O autoritarismo se alimenta da memória curta das pessoas. Isso explica o giro radical que nos últimos tempos atinge a defesa criminal a cargo da advocacia e da defensoria pública, a ponto de ser plausível a crença de que é coisa do passado o tipo de reverência e de respeito público que mereceram profissionais como Evandro Lins e Silva e Antonio Evaristo de Moraes Filho.

O ambiente autoritário é sufocante e ao subtrair o ar da defesa criminal, a título de combater a criminalidade, esse ambiente afoga a liberdade e condena a democracia à morte lenta e dolorosa.

Sempre há um bom motivo para perseguir e incriminar os defensores criminais e não raro a razão punitiva está escorada na convicção de que se trata de profissionais dedicados a fazer do crime alheio uma bem-sucedida empresa. Punir os defensores criminais, portanto, está justificado na ideia subjacente, de cunho moralista, de que se está punindo o próprio crime e expiando os pecados da sociedade.

Taxi Driver conta a história de Travis, que observa Nova York de seu táxi e irrompe com violência contra o que julga ser a escória que contamina a cidade.

É compreensível que a experiência social padeça da falta de condições para que a maioria das pessoas leve a bom termo a crítica sobre o próprio agir. Imersos no presente, dominados pelo medo, portadores de ressentimento cultivado pela educação rasa da comunicação social, televisão, rádio e redes sociais que ensinam a enxergar no Outro e não nas estruturas econômicas, sociais e políticas viciadas a causa de nossas dificuldades, dores e fracassos, somos juízes implacáveis da moral alheia e tolerantes árbitros de nossos próprios desvios, invariavelmente justificados a priori.

No Ocidente historicamente parece ter sido desenvolvida uma espécie de tecnologia da transferência, por meio da qual os poderosos habilitam uma teologia fundada na dicotomia pecado-expiação que, assumindo que o Outro é a causa formal e final de nossos males, autoriza o desrespeito, a zombaria e o descrédito dirigidos aos que não somente devotam a vida a lutar por justiça na análise da conduta do acusado de um crime, mas, em muitos casos, denunciam o caráter arbitrário, injusto e caprichoso do próprio processo incriminador.

Para quem estava no tempo presente do Martelo das Feiticeiras não era plausível supor que aqueles hereges mereciam ser defendidos. O estorvo da defesa consistia não apenas no ato de postergar o castigo. Ao denunciarem o arbítrio do caso concreto, os defensores igualmente denunciavam a injustiça genérica daquele exercício de poder. Eram, portanto, inimigos da ordem, talvez mais perigosos que os alegados criminosos porque os defendiam desde o interior do próprio sistema, traindo assim a confiança dos seus em favor do Outro merecidamente odiado.

Em tempos de paz e no âmbito interno da sociedade a incriminação do advogado criminal por obstrução de justiça é o equivalente jurídico-moral ao crime de traição. Neste caso, a belicosidade endereçada a advogados e defensores criminais leva a etiqueta que os define a priori como traidores de sua classe, isto é, agentes desleais que por ganância prejudicam as pessoas de bem.

A neutralização dos criminosos não é suficiente. Afinal, por definição estes não pertencem à classe das pessoas de bem. Punir quem os defende, valendo-se ora das sanções morais que destroem reputações, ora também das sanções jurídicas habilmente aplicadas a partir de rudimentar processo hermenêutico de confusão entre a defesa do acusado e o incentivo ao crime, revela-se importante tática política porque inibe resistências no âmago deste grupo social autocompreendido como legítima expressão da sociedade, representação de um todo homogêneo e harmônico.

Outro Inocêncio, o III, na Bula de 1206, imputava aos advogados dos hereges a sanção de perpetua infamia, enquanto os inquisidores da Espanha moderna, ressalta González-Cuéllar Serrano, “toleravam aos advogados sempre que fossem colaboracionistas ou cerimoniais”,[2] tal seja, se atuassem com o exclusivo fito de legitimar o ritual punitivo que sacrificaria o inimigo comum.

A distância histórica e o consenso sobre o absurdo da inquisição funcionam como uma espécie de proteção que o jurista adepto do punitivismo no século XXI invoca para defender-se ao postular a incriminação de advogados e defensores criminais por obstrução de justiça.

Este mesmo jurista, orbitando no campo de justificativas do senso comum que presidem o juízo dos leigos, alega que o combate ao mal que representa o crime fundamenta a pretensão de incriminar advogados e defensores públicos que orientam os acusados, esclarecem que estes não têm o dever de colaborar para a própria punição ou que suas ações em oposição à autoincriminação estão tuteladas pela Constituição, por tratados internacionais e, principalmente, pelo único sentido que pode ter a expressão ampla defesa.

O século XX conheceu muitos juristas e magistrados que lutaram contra os defensores e o direito de defesa. O século passado conheceu também defensores que, correndo risco pessoal, entregaram-se à defesa criminal com obstinação. Em ao menos dois textos célebres Luis Jimenez de Asua sublinhou corajosamente o que significou este tipo de justiça concedida por magistrados punitivistas a partir da conhecida fórmula “constituída pelo ‘são sentimento do povo’”,[3] que liberou os juízes do nazismo das amarras hermenêuticas da defesa penal como técnica, prática e política de obstrução de injustiça, para perseguirem e, por intermédio do processo, a título de defender a moralidade comum contra os atentados à ordem estabelecida, libertarem o dragão do fascismo, engolindo em um só ato de voracidade o Outro e o traidor da classe, o defensor criminal.

O presente artigo trata da defesa penal como obstrução de injustiça, de como o absurdo toma a forma de incriminação oficial e porque os defensores não devem se acovardar e se submeter às transitórias jurisprudências incriminadoras do exercício do direito de defesa.

Os últimos cem anos – parte deles formando o tempo presente dos principais atores jurídicos da atualidade – foram anos durante os quais o paroxismo na esfera das emoções parece ter turvado as vistas sobre o que costuma ser o real funcionamento do sistema de justiça penal. Se a razão não dá conta de entender como e porquê o sistema penal funciona seletivamente, lembra Salo de Carvalho nas nossas conversas acadêmicas, apelar aos fatos pode ser de alguma valia.

Jimenez de Asua recorda que em 27 de abril de 1929, em Madri, defendeu L. S., preso por agentes policiais disfarçados quando, durante um protesto no centro de Madri, L. S. foi reconhecido como o sujeito que gritou: Viva la República!

O defensor Jimenez de Asua indagou à época: será o Viva la República um grito subversivo?[4] A resposta positiva dos juízes naquela ocasião no mínimo recomenda aos nossos magistrados, na atualidade, muito cuidado relativamente às suas crenças punitivistas.

O defensor Jimenez de Asua indagou à época: será o Viva la República um grito subversivo? Foto: Arte de Bansky.

O que importa sublinhar aqui não é tanto o caráter datado das incriminações genéricas atribuídas aos que são acusados da prática de infrações penais, mas o desvio autoritário dos que exercem o poder, no sentido de calar a defesa, transformá-la em cúmplice da punição ou ao menos do enfraquecimento da resistência moral dos acusados às pretensões punitivas, negando orientação sobre os direitos e garantias de que estes são efetivamente titulares.

As interdições opostas aos defensores criminais relativamente à orientação jurídica que têm o dever de ministrar aos que os constituíram ignoram muitas coisas e partem de outras tantas, que são premissas que devem ser denunciadas por sua falsidade e pelo seu autoritarismo intrínseco.

Supõe-se, inicialmente, que o processo é o veículo para a obtenção de uma verdade única e absoluta e que, naturalmente, os fatos não comportariam várias versões, algumas delas contraditórias entre si. Essa noção de verdade que domina o imaginário leigo e o dos juristas autoritários é de uma pobreza fransciscana.

Ao tratar do caráter essencial da defesa penal para o estado de direito, Jorge E. Vázquez Rossi adverte para o fato de que ninguém tem o absoluto patrimônio da verdade.[5] Os mesmos fatos podem ter muitas explicações diferentes e contraditórias entre si, conforme o ângulo pelo qual tenham sido vivenciados, conforme as expectativas e perspectivas das pessoas envolvidas e, mesmo, consoante tenham sido ou não compreendidos em sua amplitude pelos participantes dos eventos incriminados. Não existem fatos brutos, apenas fatos interpretados.[6]

Os leigos tendem a simplificar a sua visão de realidade e é esta simplificação, sem respaldo epistemológico algum, que os leva a crer que existe somente uma versão verdadeira dos fatos, ignorando a obviedade indicada pelo significado do termo versão: visão parcial da realidade.

Acusados são leigos ou tendem a pensar como leigos, receando que discrepâncias ou lacunas em declarações sejam interpretadas como deliberada falsificação da realidade e não como problemas de percepção, memória ou interpretação, que são alguns dos mais comuns.

Daí que é compreensível que a conversa entre corréus visando o estabelecimento de estratégias de defesa esteja situada no âmago do direito de defesa, como afirmado, ainda que de modo superficial, no julgamento da medida cautelar em habeas corpus nº 86.864-9 SP, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), em 20 de outubro de 2005, e sua proibição e/ou incriminação atentem contra o mencionado direito constitucional de defesa, ademais de afrontarem a presunção de inocência, não se tratando apenas da tutela contra a autoincriminação compulsória.[7]

Por outro viés, a necessária adequação das regras jurídicas à realidade social impõe limitações ao processo punitivo. Evidente que, se no estado de direito, a vontade da maioria não tem o poder de suplantar os limites punitivos definidos pela lei penal, o mecanismo inverso é observado, operando-se processos de descriminalização pela via da abertura de sentidos que a defesa penal oferece ao indicar a tessitura concreta e complexa da vida, que muitas vezes desafiará com sucesso a rigidez aparentemente inflexível do comando legal repressivo.

As defesas penais ensinam muito. Ao apresentar a terceira edição do clássico Defesas Penais, de João Romeiro Neto, Nilo Batista comparou o conceito de coação moral irresistível produzido pelo embrutecido rigor do teórico do direito, ao que se constrói na consideração do ser social do agente, consideração fruto da capacidade do defensor de não se render à tábula dogmática aferrada ao fim punitivista.

São suas palavras, referindo-se indiretamente à contribuição do defensor Romeiro Neto em suas pelejas no júri:

“Porém, a tragédia da escrevente de Caxias, que praticou duplo homicídio dentro da delegacia de polícia, e a invocação de coação moral irresistível social, não deveriam concitar nossa atenção para a pobreza de um conceito de culpabilidade fundado inteiramente em dados pessoais, e divorciado do ser social do agente? Em alguns casos, não seria essa a porta pela qual a ideia de inexigibilidade de conduta conforme o direito ingressaria – sem dizer seu próprio nome – na prática judiciária brasileira?

(…)

Meio século antes de que os professores se libertassem da irracionalidade retributivista, os advogados do júri já trabalhavam a pena de um ângulo político, com tinturas utilitaristas; em nenhum outro espaço se afirmou tão reiterada e claramente que as leis devem servir aos homens, e não ao contrário.” [8]

Nessa seara, o encontro entre a vida concreta e as superstições autoritárias, em particular as de cunho moralista, produz atritos que nos casos criminais tendem a ser resolvidos em favor do poder autoritário, ora desprezando e desqualificando a figura do advogado ou defensor criminal, ora incriminando de modo direto essa conduta, frequentemente com apoio e a parcialidade dos meios de comunicação de massa.

Novamente Nilo Batista, com sua longa e festejada experiência, é quem nos beneficia com depoimento pessoal bastante ilustrativo, porque resulta de sua breve passagem na defesa de um dos processos da denominada Operação Lava-Jato no qual o caráter persecutório de natureza política está atraindo a atenção internacional.

Diz o mestre mineiro:

“Achincalhar e mesmo criminalizar advogados foi expediente comum aos autoritarismos do século XX, do nazismo aos regimes latino-americanos da segurança nacional. Na circunstância de R. T. ser velho amigo e advogado de Lula e de inúmeros companheiros de partido um membro do Ministério Público vislumbrou algo ilícito…” [9]

No contexto da incriminação da defesa criminal as estratégias persecutórias chegam ao absurdo que, entre nós, presumia-se ultrapassado como tática oficial de investigação desde 1985, termo final da ditadura empresarial-militar. Com efeito, escritórios de advocacia têm suas centrais telefônicas indevidamente devassadas.[10]

A incriminação da defesa criminal é ilegal. É também, fundamentalmente, uma violação ao estado de direito. Flerta com o autoritarismo e namora firme o moralismo salvacionista. É de se esperar que a justiça não lhe dê ouvidos… por outro lado não se deve negligenciar a pressão da comunicação social e os propósitos políticos ocultos que sempre estiveram a lhe inspirar.

Basta lembrar Inocêncio VIII:

“haverá de ameaçar a todos os que vierem a dificultar ou impedir a ação dos Inquisidores, a todos os rebeldes, de qualquer categoria, estado, posição, proeminência, dignidade ou de qualquer condição que seja… haverá de ameaçá-los com a excomunhão, a suspensão, a interdição e, inclusive, com as mais terríveis penas, as piores censuras e os piores castigos”

Com estas palavras autoritárias em mente, a desafiar a reação de advogados e defensores criminais em todo o país, cumpre que estes respondam às Bulas modernas, que surgem na forma de leis espúrias e decisões ilegítimas incriminando a defesa criminal, que se há algo a que os advogados e defensores criminais aspiram a obstruir, este algo é a injustiça.

Porque lutam por obstruir as injustiças do poder, os advogados e defensores criminais hão de ter coragem e capacidade para reverter as transitórias jurisprudências incriminadoras do exercício do direito de defesa.

P.S. “Não sei de nenhuma outra forma mais dolorosa e pungente de advogar que a advocacia criminal. Tudo nela é dor e desespero.” [11]


[1] KRAEMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Tradução de Paulo Fróes. 28ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 25/26.

[2] GONZÁLEZ-CUÉLLAR SERRANO, Nicolás. Ecos de la Inquisición. Madri: Castillo de Luna, 2014. p. 301/2.

[3] JIMENEZ DE ASUA, Luis. El Criminalista. Tomo VII. Buenos Aires: La Ley, 1947. p. 124/130.

[4] JIMENEZ DE ASUA, Luis. Defensas Penales. Tomo II. Buenos Aires: El Foro, 2011. p. 180.

[5] VÁZQUEZ ROSSI, Jorge E. La Defensa Penal. 4ª ed. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2006. p. 62.

[6] GONZÁLEZ LAGIER, Daniel. Quaestio facti (Ensayos sobre prueba, causalidad y acción). Bogotá: Temis, 2005. p. 25.

[7] MC em HC nº 86.864-9 SP. Relator: Min. Carlos Veloso. Impetrante: José Roberto Batochio e outro(s). Paciente: Flávio Maluf. Pleno do STF. Data do julgamento: 20/10/2005. D.J. 16.12.2005. Ementário nº 2218-4. O voto do relator não aprofunda o tema. A matéria volta a ser ventilada no STF na MC em HC nº 143.247 RJ, da Relatoria do Min. Gilmar Mendes (Impetrante: Fernando Teixeira Martins; Paciente: Eike Fuhrken Batista). Sobre a defesa penal e o ‘problema da verdade’ no âmbito dos deveres do advogado ver: CERVINI, Raúl e ADRIASOLA, Gabriel. Responsabilidade Penal dos Profissionais Jurídicos: Os limites entre a prática jurídico-notarial lícita e a participação criminal. São Paulo: RT, 2013. p. 71 e seguintes. Registre-se, todavia, que mesmos experimentados profissionais do direito, quando devem depor como testemunhas, temem a interpretação que possa ser conferida a esquecimentos, desatenção, ignorância e erro no relato sobre os fatos.

[8] BATISTA, Nilo. Apresentação de Defesas Penais. ROMEIRO NETO, João. 3ª ed. Rio de Janeiro: Liber Juris. p. 7.

[9] BATISTA, Nilo. Advocacia em tempos sombrios, in: O Caso Lula: a luta pela afirmação dos direitos fundamentais no Brasil. Coord. Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valim. São Paulo: Contracorrente, 2017. p. 99.

[10] https://www.conjur.com.br/2016-abr-06/escritorio-grampeado-sergio-moro-mpf-investigue-juiz. Consultado em 22 de outubro de 2017.

[11] Rosa, Eliézer. Romeiro Neto, o último romântico da advocacia criminal, in: Defesas Penais. ROMEIRO NETO, João. 3ª ed. Rio de Janeiro: Liber Juris. p. 22.

Artigo publicado na Justificando.