Em precioso ensaio denominado “Paul Ricoeur, leitor de Hegel”(Cult, nº 218, nov. 2016, p. 42/45), Abrahão Costa Andrade estabelece pontos de contato entre o pensamento de ambos os filósofos a partir da leitura que Ricoeur fez da obra de Hegel mencionada na epígrafe.

Entre os aspectos sublinhados por Andrade destaco a advertência, que resulta da leitura combinada dos filósofos, de que o tempo da ação deve ser o da prudência, em especial quando a urgência da crise parece nos convocar a agir imediatamente.

Andrade, de forma direta e clara, identifica a prudência em Hegel e Ricoeur da seguinte maneira:

“A maior proximidade entre Hegel e Ricoeur, por sua vez, encontra-se talvez quando se pensa na constante necessidade, alegada por Ricoeur, de não se queimarem etapas, de fazer-se um longo caminho, de pensar mediada e laboriosamente, de não determinar de uma vez por todas o que é preciso fazer, ainda que fazer algo seja urgente e preciso… é Ricouer quem, por sua vez, não acredita que para transformar o mundo seja necessário destruir o mundo; para transformar as instituições, danificá-las; para inovar as tradições, ignorá-las.”

Desde o final do ano passado assistimos a ações que partem da direção do Congresso e do STF, e também perpetuam-se em determinados níveis, encarnadas em certo personagem da Lava-Jato, que mais parecem responder à urgência com um “agir” inevitável, oposto à cautela que toda situação de crise impõe.

Desde a prisão do então Senador Delcídio do Amaral, fora dos marcos da Constituição, passando pelos atos ilegais de Sergio Moro que resultaram na ilícita divulgação das conversas entre a Presidente Dilma e o ex-presidente Lula, na intromissão do STF no impedimento da posse de Lula no Ministério, na instauração e condução com desvio de finalidade do processo de impeachment pelo suspeito Eduardo Cunha, na decretação do impeachment confessadamente sem crime de responsabilidade, até às recentes decisões do STF que atingiram o funcionamento do Senado e da Câmara, a hipotética “necessidade de agir” levou a decisões que estão danificando a Constituição e destruindo o estado de direito em nosso País.

Essa destruição do mundo constitucional brasileiro, ignorando a nova tradição jurídica (pós 88), apenas seria possível por meio de atitudes dos que integram as cúpulas dos poderes públicos. Apenas os Deputados, Senadores e Ministros do STF, porque são os derradeiros defensores da ordem jurídica, têm o poder de ignorar solenemente o direito e partir para a política e, em consequência, impor de cima para baixo a instabilidade na vida da nossa sociedade.

É necessário compreender que sem as amarras do jurídico, o que sobra é regime de força, a força bruta que se testemunha nas Emenda e propostas de Emendas Constitucionais que o governo resultante da deposição da Presidente Dilma leva a cabo, destruindo o projeto de Estado de Bem-Estar, por conta de um arremedo de neoliberalismo de periferia, que nada mais é do que a velha e suspeita submissão colonial, disfarçada pela mesóclise da ignorância.

Somente a prudência da reflexão, contra a urgência da ação, no Congresso e no STF, teria capacidade de impedir o desastre que se consuma diariamente, mas que agora toma a forma culminante de claro enfrentamento entre Poderes.

A condição de árbitro das crises, que cabe ao Judiciário, em tese é exercida com sucesso apenas se o Judiciário atua no marco do direito vigente – e, em particular, nos limites estritos da Constituição – para institucionalizar e resolver os conflitos que, de outro modo, solucionam-se pela força determinada por conjunturas e eventuais coincidências de interesses entre parcelas das elites.

Ao colocar o direito de lado, por melhores que sejam as razões supostas, o STF perde em legitimidade e, à semelhança de outros atores que deveriam pautar-se exclusivamente pelo respeito à legalidade, direito e justiça, ingressa em um terreno movediço no mesmo plano daqueles cujas condutas deveria arbitrar, não se dissociando deles. Está na quadra como mais um jogador e não como árbitro.

Quando não é mais possível distinguir, nas decisões do Supremo, o que é direito daquilo que é exclusivamente política, este órgão passa a sofrer do déficit de legitimidade que afeta os demais. Alerte-se para o fato de que, no caso do Judiciário e em especial do STF, apelar à opinião pública para apoiar as suas decisões é a receita certa para a catástrofe que nos arrastará a todos.

Há neste ponto (mais) maus exemplos da didática de Sérgio Moro, que confessadamente alicerçou sua estratégia na Lava Jato em uma pseudo-aliança com a opinião pública.

Para enfrentar a corrupção, Moro lançou mão de prisões evidentemente contrárias à tradição jurídico-constitucional brasileira pós 88, e o suporte que reivindicou à esfera pública chegou a ponto de levar o STF a decidir sobre a presunção de inocência contra o texto expresso da Constituição, em um processo de mutação de índole não garantista (importa pouco que nos votos alguns ministros hajam negado a influência, que nas circunstâncias é inescondível).

Igualmente, Moro ultrapassou de forma consciente e escancarada os limites da competência jurisdicional. Em alguns (poucos) casos houve correções de rumo impostas pelo TRF4, STJ e STF, mas na maioria das vezes o apoio à violação das mais comezinhas regras de competência jurisdicional, conforme a dogmática do processo e os “precedentes” dos próprios tribunais, deslocou o controle dos meios para o julgamento moral sobre os fins (“combate à corrupção”), concretizando com dois séculos de atraso o cenário grave advertido por Hegel: “A impaciência pretende o impossível, isto é, a obtenção da meta sem os meios”.

A corrupção deve ser enfrentada, disso há pouca dúvida. Há órgãos que demonstraram capacidade para levar adiante essa tarefa sem messianismo. Quando, todavia, o direito é escanteado, a força se impõe e os aparentes bons resultados – a revelação do caráter sistêmico do comprometimento de nosso sistema político-partidário pela corrupção provocada por agentes da iniciativa privada – incentivam mais e mais a substituição do jurídico pelo político e concomitantemente com a perda de legitimidade do Judiciário e do STF vem a instabilidade, com o risco de ampliação incontrolável do desrespeito às regras.

As sociedades democráticas vivem do respeito consciente às regras pela maioria de seus membros e, quando é o caso, pela correção das violações pelo Judiciário.

A pedagogia da prevalência dos fins sobre os meios converte comunidades em massas e massas em turbas, altamente influenciáveis por lideranças carismáticas que apelam à destruição do outro, à eliminação da alteridade e à extirpação da empatia, esse sentimento indefinido de identificação com aqueles que não somos nós mesmos.

Aos que temem o fato de que o pesadelo 2016 ainda não acabou (faltam 16 dias), o clímax está no ponto crítico de um certo cinismo social, que pode descambar em tragédia, síntese de todos os absurdos que a prevalência da política sobre o direito está provocando: não importa se as pessoas odeiam Lula, o amam, são indiferentes ao destino dele ou se simplesmente querem justiça. Todas sabem que Sergio Moro, pelas razões óbvias, públicas e claras, relacionadas nas petições que reclamaram a sua suspeição no caso concreto, perdeu a imparcialidade, atributo jurídico fundamental para legitimação da jurisdição.

Apesar desse conhecimento comum, de que no caso, para Moro o processo é mero ritual e ele está decidido a condenar o ex-presidente, as autoridades judiciárias insistem em permitir que o mencionado magistrado persista dirigindo um processo sem o atributo da imparcialidade.

O efeito catastrófico disso está em a política suplantar em caráter definitivo o direito. Não são preservados o próprio magistrado, o acusado (titular do direito a ser julgado por juiz imparcial), a sociedade e o estado de direito.

Na sequência das imprudências que experimentamos ao longo do ano, esta poderá ser a gota que levará ao transbordamento da crise. O enfraquecimento das instâncias não é revertido com gestos de autoridade. Há um momento em que as pessoas passam a duvidar da força que a coerção emanada dos poderes públicos pode colocar em movimento de modo legítimo.

Voltar a confiar na Constituição de 1988 e nas regras e princípios jurídicos que dela derivam, em razão do pacto democrático que exprime, me parece ser o único modo de recobrar a estabilidade institucional e social e pavimentar o caminho para um 2017 que recupere o País e os brasileiros.

Na mesma Cult, dedicada a Hegel, Alex Calheiros chama atenção para a análise de Gramsci acerca da obra do filósofo alemão:

“Gramsci terá compreendido muito bem Maquiavel, o secretário fiorentino que fora um dos modelos de pensamento político para o jovem Hegel: é com a experiência de nossas derrotas que aprendemos os ensinamentos para as ações que farão a história do nosso futuro”.

Artigo publicado no Justificando.