Nesta semana, o STF concluirá importante julgamento, que poderá definir o âmbito normativo do acordo de colaboração premiada e os limites da rescindibilidade do negócio jurídico entre o imputado colaborador e o Ministério Público.

Em um ensaio de fôlego rápido não há como esgotar os temas que a análise do instituto suscita, tampouco existe essa pretensão.

O objetivo é colocar em foco o que parece ser o aspecto mais delicado daquilo que poderá ser decidido: no futuro, se em processos que tenham sido instaurados com apoio em declarações do colaborador, o tribunal entender que as informações fornecidas por ele revelaram-se inconsistentes para fundamentar decreto condenatório ao lado das provas produzidas, o acordo homologado pelo STF poderá ser revisto?

Penso que o fato de ter advertido, em 2003, por ocasião da publicação de “Transação Penal” – hoje editado pela prestigiada Almedina de Portugal -, que a opção por alargar o âmbito da negociação em torno da pena configuraria um grave erro de política criminal, evidencia meu particular ponto de vista de contrariedade ao instituto da colaboração premiada.

Certo é, no entanto, que a Lei nº 12.850/13 avançou na estruturação dos mecanismos da colaboração premiada, que ganhou visibilidade e notoriedade a partir de seu uso, nem sempre adequado, no conjunto de procedimentos da denominada “Operação Lava Jato”.

A “delação premiada” constitui, pois, prática jurídico-penal que, adotada ainda originariamente no STF, está em plena vigência ao menos para os colaboradores e em essência é esta vigência que está na base da decisão individual de não recorrer à garantia contra a auto-incriminação compulsória, cujos efeitos ultrapassam as fronteiras das investigações criminais e atingem em caráter definitivo outras esferas jurídicas e o próprio status de dignidade do colaborador.


Há uma “irreversibilidade” de efeitos sempre que, homologada pelo Judiciário a colaboração entre suspeito e MP, seus termos se tornam públicos.


Isso não pode ser ignorado, não somente pelo ângulo da conveniência do instituto nos casos individuais, mas porque é inadmissível juridicamente que o Estado desproteja o indivíduo, levando-o a abrir mão da garantia contra a auto-incriminação compulsória, para depois beneficiar-se disso, algo que em tese poderia ocorrer e não estaria impedido epistemologicamente pela frágil proteção do § 10 do artigo 4º da Lei nº 12.850.

Neste sentido, o significado de “colaboração efetiva”, referido no caput do artigo 4º da referida lei, há de ser construído em consideração às estruturas acusatórias que o nosso processo penal deve obedecer.

Concordando ou não com a decisão do Constituinte (1987/8), fato é que o art. 129, I, muito claramente confere com exclusividade ao MP os poderes para exercer a ação penal.

Como mencionei em “Transação Penal”, a titularidade relativamente ao exercício desses poderes é monopólio do MP. Assim ocorre no que concerne à iniciativa exclusiva do MP para propor a transação penal e a suspensão condicional do processo.

Não será diferente na colaboração premiada, mesmo que o “prêmio”pactuado na delação seja o perdão judicial (não tratarei de acordos penais sobre “quantidades de pena e formas específicas ou especiais de execução de sanções eventualmente ajustadas”), possibilidade expressamente prevista na lei de regência.

Especificamente no que toca ao perdão judicial, sob a forma da decisão do MP de não ajuizar ação penal, homologada pelo juiz competente, a análise levada a efeito pelo magistrado no momento de homologar ou não o acordo de colaboração é simétrica àquela prevista no art. 28 do Código de Processo Penal (CPP), em vigor há mais de 70 anos.

Com efeito, se o MP apresentar razões que justifiquem o arquivamento da investigação criminal e o juiz concordar com estas razões, a investigação será arquivada. A mencionada forma de controle da obrigatoriedade está em nosso ordenamento há muito tempo e nunca provocou a reação e as críticas que hoje estão dirigidas ao instituto da colaboração nos estritos termos do caso que o STF apreciará.

O peso da titularidade da ação penal em mãos do MP reside nisso: admitir no plano jurídico que decisões sobre acusar ou não acusar sejam deliberadas, exclusivamente, pelo próprio MP. O controle de legalidade exercitado pelo judiciário no âmbito do acordo de colaboração premiada – fórmula anômala de controle da obrigatoriedade – não tem a extensão e a profundidade que levem a justificar qualquer forma de constranger o MP a acusar.

Reclama-se que nos países de origem do instituto o MP em regra sofre um controle popular que funciona para “calibrar” os casos de acordo e os temas e consequências do acordo. A ausência deste tipo de controle legitimaria uma “invasão” de competência constitucional do Judiciário até mesmo sob a surpreendente forma de valoração da “efetividade” da delação no que concerne ao “resultado” de processos iniciados com base nela.

Na minha opinião, pensar assim importaria em contornar a proibição constitucional de exercício de ação penal pública por outra instituição que não o MP. Não, evidentemente, porque a desconstituição do acordo na hipótese de absolvição do delatado, por exemplo, implique em obrigar o MP a “denunciar” o colaborador beneficiado pelo perdão, mas porque abriria a porta para o exercício indevido da ação penal privada subsidiária da pública e porque, como sublinhei, a colaboração premiada produz efeitos também em outras esferas jurídicas, que estariam afetadas por uma semelhante decisão de “rescisão” do acordo.

Trata-se de poderosas estratégias de intimidação de colaboradores – e mesmo de represálias – que podem produzir consequências em planos sérios que são os que têm preocupado imensos setores da criminologia crítica (vide livro organizado por Iñaki Rivera Beiras – Barcelona: Anthropos, 2014): o da danosidade social verificada na interface crimes de mercado e crimes de estado, que está pulverizando os esforços das modestas e novas democracias latino-americanas de se enraizarem como práticas políticas e sentimento social.

Quando em 1987/8 o Constituinte optou pelo empoderamento do MP sem o contrapeso do controle popular, trasladou-se para o nosso ordenamento de tradição continental europeia um modelo que não haveria de guardar simetria com os da origem.

Como advertiu Máximo Langer, no texto que volto a reproduzir, experimentamos uma “fragmentação” de nosso “procedimento” e não sua “americanização”.

A correção de rumos não se fará, em minha opinião, somando um erro a outro. Preservar o acordo homologado, desde que o colaborador cumpra com a sua parte, é a maneira de assegurar que a “suspensão pactuada de garantias” não seja uma fraude estatal por meio da qual, aí sim, o Estado Policial estaria a se infiltrar.

Geraldo Prado é Professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Abaixo algumas considerações de Máximo Langer, professor na UCLA, sobre a “importação de modelos”, relativamente à justiça penal negocial [https://curriculum.law.ucla.edu/Guide/Instructor/108].

A partir das ponderações de Langer e de Elisabetta Grande (Imitação e Direito: hipóteses sobre a circulação de modelos), em texto inédito aprofundo a abordagem sobre o âmbito normativo da colaboração premiada. O enfoque irá integrar a obra “Processo Penal: Fundamentos”, a ser lançada em breve pela Editora Marcial Pons.

Ficam algumas das observações de Langer.

“As delações premiadas, alemã, italiana, argentina e francesa, diferem substancialmente entre si por causa das decisões dos legisladores em cada um desses países, das diferentes maneiras em que a prática foi introduzida, e pela resistência gerada. Dadas as diferenças entre essas delações premiadas, a adoção de alguma forma de plea bargaining nestas jurisdições pode produzir diferentes transformações ou efeitos em cada jurisdição. Portanto, a potencial influência da plea bargaining americana em jurisdições de Civil Law poderá não ser que os sistemas de Civil Law irão gradualmente se parecer com o sistema legal americano, mas sim que eles poderão começar a divergir entre si em aspectos em que, até muito recentemente, eles têm sido relativamente homogêneos. Em outras palavras, o efeito paradoxal da influência norte-americana sobre os procedimentos penais da tradição Civil Law pode não ser a americanização, mas sim a fragmentação e a divergência dentro do Civil Law.”

[Tradução livre. No original: The German, Italian, Argentine, and French plea bargains differ substantially amongst themselves because of decisions by legal reformers in each of these countries, the differing ways in which the practice has been introduced, and the resistance it has generated. Given the differences among these plea bargains, the adoption of some form of plea bargaining in these jurisdictions may produce different transformations or effects in each jurisdiction. Therefore, the potential influence of American plea bargaining on civil law jurisdictions may not be that civil law systems will gradually resemble the American legal system, but rather that they may begin to differ amongst themselves in aspects on which, until very recently, they have been relatively homogeneous. In other words, the paradoxical effect of American influence on the criminal procedures of the civil law tradition may not be Americanization, but rather fragmentation and divergence within the civil law. LANGER, Máximo. From Legal Transplants to Legal Translations: The Globalization of Plea Bargaining and the Americanization Thesis in Criminal Procedure. Disponível em http://www.ibccrim.org.br/DPE2014/docs/flavio/langer.pdf. p. 4.]”

Publicado no Justificando.