A noite.
Por muito tempo na história da humanidade a noite foi um mistério.
O cair da noite assustava nossos antepassados, que se refugiavam em abrigos até o instante do dia em que era possível discernir as formas, orientar os movimentos e perceber e evitar os perigos.
No norte da Europa, fonte de tantas lendas, mitos e histórias em que a noite é personagem, o anoitecer precoce, as densas florestas e os animais selvagens inspiraram estórias em que a escuridão era associada ao medo e o sol surgia como o poderoso salvador da vida.
Expressões como «uma longa noite baixou sobre o reino» serviam para robustecer a má reputação da noite.
A ignorância cegava, mas era a noite que injustamente carregava a má fama.
Em outro canto da terra, no entanto, na Mesopotâmia, berço da civilização, os olhares voltaram-se generosamente para o céu e logo perceberam na dança dos corpos celestes as virtudes inequívocas da noite.
Preservada dos efeitos delirantes do sol, a noite oferecia aos curiosos inteligentes a perspectiva necessária para compreenderem o movimento dos astros, nossa própria condição de morar em mais um entre eles.
Essa humildade diante da grandeza da noite fez nascer a astronomia, nossa imensa capacidade de orientação e movimentação segura, em terra e no mar, nossa aptidão em apreender a hora de plantar e a de colher.
A noite, de inimiga, constituía-se em aliada dos humanos.
Muitos séculos antes de os europeus se darem conta de que habitávamos uma nave celeste de formato esférico, em que noite e dia revezavam-se em virtude da posição da terra em relação ao sol, Eratóstenes, na Alexandria, já havia calculado o diâmetro do nosso planeta (século II a. c.).
As duas “noites”, a assustadora e a bem-fazeja, ainda demorariam algum tempo para dissolverem-se e se reencontrarem sob “luzes” mais favoráveis.
A noite que abençoa namorados e namoradas não era diferente daquela que dirigia os movimentos seguros por áreas inacessíveis aos limitados olhos humanos.
Contra as evidências, o imaginário negativo da noite continuou sendo explorado como instrumento de dominação.
A noite furtiva já não ocultava demônios imaginários, fruto da sinfonia da natureza interpretada como fonte de perigos.
Ladrões supostamente escondiam-se na escuridão, apesar de os roubos mais irreversivelmente danosos darem-se à luz do dia.
À literatura seduzia o sentido perigoso atribuído ao escurecer. Sem dúvida que o poder disciplinar sobre corpos de crianças e adultos foi sensivelmente reforçado pelo temor da punição por meio da “noite sem fim”.
A luz do sol sempre beneficiou-se de uma imerecida boa reputação, como se a possibilidade de enxergar o mal tivesse o efeito de o esconder.
O principal dom do diabo, diziam, consiste em convencer as pessoas de que não existe. A luz do dia testemunhou os maiores crimes da humanidade, mas foi a noite a incriminada (vício de “reconhecimento” que importamos para os processos criminais).
O romantismo veio iniciar o processo de resgate da noite.
A poesia, a canção, os contos, consagrando a noite como protetora e benfeitora afinal encontrarão nos mais variados campos do saber a confirmação de que as belezas e potencialidades da noite desmoralizam por completo a ideia de que este fenômeno causado pelo imperceptível movimento da terra, carregue em si algo que não seja paz, tranquilidade, restauração, esperança.
A noite é essencial à vida e, como bem sabem os poetas e astrônomos, mais do que parte da própria vida, a noite é o berço do ato cotidiano de renascer, recomeçar.
Afinal, diz a poesia, a noite é o anúncio glorioso do amanhecer.

Foto: Observatório do Pico dos Dias