Vivemos o tempo da morte e o enfrentamos com a cultura da vida.

Vivemos o tempo da morte. Da morte causada pela pandemia e seu afogamento a seco. Da morte provocada pelo neofascismo, por sua violência material e simbólica, pela estupidez, ignorância e intolerância.

A experiência nos ensinou que a superação dos tempos de morte é sempre dolorosa e deixa cicatrizes profundas. Mas foi possível vencer este tempo doentio e é possível vencê-lo novamente agora.

A luta contra o tempo da morte exige perseverança, determinação, humildade e, principalmente, solidariedade.

É a luta que se faz confiante em uma filosofia de defesa da vida. Da vida humana, de todas as formas de vida que habitam o planeta.

Uma cultura da vida pautada pela perseverança, determinação, humildade e solidariedade está fundada no respeito ao conhecimento e na compreensão de que a ciência é uma empreitada coletiva, com metas, mas sem prazo, que aceita os erros e as dúvidas como parte incontornável do caminho.

Uma cultura da vida pautada pela perseverança, determinação, humildade e solidariedade sofre e chora as perdas humanas e ecológicas porque não existe sem empatia.

Uma cultura da vida pautada pela perseverança, determinação, humildade e solidariedade reconhece que na vida real, no enfrentamento do tempo da morte, não há heróis míticos, pessoas mágicas portadoras da verdade absoluta e da razão inquestionável.

O heroísmo da cultura da vida toma a forma de uma corrente humana de anônimos em que todos e todas que querem lutar e lutam para a defender são importantes, com as diferenças que os caracterizam, mas vinculados entre si pelo propósito de fazer a vida vencer a morte.

A morte funciona como o buraco celeste que suga toda a luz que consegue seduzir e dele fazer se aproximar. A energia da vida é arrastada para o interior desse buraco e é consumida num tempo sem volta.

É necessário frear essa queda e toda energia disponível deve voltar-se a este projeto na defesa da vida.

Dispersar a energia no entrechoque das diferenças entre os/as defensores e defensoras da vida importa contribuir para a consumação do tempo da morte.

Os elos dessa corrente, isoladamente, são fracos. A sua força vem da coesão, mas esta coesão depende do respeito às diferenças.

Evitar a dispersão da energia necessária à cultura da vida passa pela nossa capacidade de cultivar o cuidado para com o diferente.

O adversário, seja o vírus, seja o fascismo, se vale da violência real e simbólica. A quebra da corrente da cultura da vida muitas vezes é causada pela força cortante das palavras, gestos e ações que produzimos sem perceber a delicadeza do que está em volta, sem notar que, porque as palavras têm força, elas podem ferir, magoar, dividir, enfraquecer.

Na luta contra o vírus e o neofascismo em um contexto de tempo de morte é essencial, penso eu, refletir muitas e muitas vezes antes de falar e agir de modo a marcar diferenças entre aliados que existem independentemente dessas falas e ações.

A palavra e a ação neste caso não marcam diferenças; provocam cicatrizes profundas. Para ser aliado é necessário admitir a aliança, base de toda a solidariedade, e ser tolerante mesmo quando se supõe estar certo. A certeza individual tem menos força que a corrente coletiva.

Em outras épocas os humanos, mulheres e homens, venceram os vírus e os fascismos. Estamos mais preparados hoje do que nossos antepassados.

Necessitamos, porém, cultivar a vida com perseverança, determinação, humildade e solidariedade.

Foto de Perry Grone.