O Sistema de Precedentes no Processo Penal Brasileiro: a “derrota simultânea de Antígona e Creonte”1

Geraldo Prado

  1. INTRODUÇÃO

Gostaria de agradecer ao IBDP, na pessoa do presidente Cássio Scarpinella, pelo convite para participar das XV Jornadas Brasileiras de Direito Processual e pelo prazer de compartilhar essa mesa com as Professoras Clarissa e Danyelle, com o Prof. João Gualberto e com o Prof. e Ministro Joel Ilan Paciornik.

Minha primeira participação nas Jornadas do IBDP foi em 2004, no Guarujá: as IV Jornadas Brasileiras de Direito Processual Penal: críticas e propostas, evento coordenado pela saudosa Prof. Ada Pellegrini Grinover.

No limitado tempo de 15 minutos pretendo sublinhar a importância dos precedentes no processo penal e apresentar o esboço de uma nova arquitetura constitucional que valorize essa importância, mas que seja cautelosa quanto aos riscos da consolidação de entendimentos que contravenham a generosa ideia que a sustenta, que é a da supremacia dos direitos humanos, conforme expôs Estefânia Barboza, em sua primorosa tese de 2012, vencedora do prêmio CAPES.

Literalmente afirma Estefânia, ao tratar da justificação do sistema de precedentes em nossa atual quadra histórica:

O constitucionalismo rompe com essa visão tradicional ao estabelecer a supremacia dos direitos humanos. Essas normas, dotadas de conteúdo moral e aberto, fornecem apenas o início de solução, não sendo possível que na sua exteriorização escrita existam todos os elementos para formação do seu sentido.”2

A concepção de um sistema jurídico de precedentes como “instrumento para otimização dos direitos fundamentais” também é mencionada por Hélio Krebs.3

Inicio, portanto, por aí, isto é, pela afirmação da supremacia dos direitos humanos, para reiterar o que tive a ocasião de afirmar em meu Curso de Processo Penal, Tomo I: Fundamentos e Sistema.

A clássica tensão inerente ao processo penal como prática social de adjudicação de responsabilidade penal, opõe o que a doutrina convencionou denominar «Estado do Medo» ao «estado de direito».

Essa oposição, nem sempre nítida na organização política das categorias jurídico-processuais-penais, é refletida no caráter institucional que a persecução penal assume, o que afeta seus diversos institutos, tais como a investigação criminal e as medidas cautelares probatórias, as pessoais e as reais.

Prisão processual, reconhecimento de pessoas, apreensão de bens e afastamento de sigilos são exemplos de institutos que, a depender de seu uso concreto, transitam entre funções preventivo-policiais e cautelares propriamente processuais, um trânsito tendencialmente inclinado à restrição ao exercício de direitos e garantias e ao apagamento concreto da presunção de inocência.

Paradigma negativo dessa conversão de instrumentos do processo penal em dispositivos de controle social repressivo, na linha da exploração de um «Estado do Medo», com enfraquecimento notável da legalidade, é o emprego de mandados de busca e apreensão coletivos, expedidos para cumprimento de forma genérica e indiscriminada, contra moradores das periferias das metrópoles brasileiras, em geral nas favelas.

Neste sentido é conveniente destacar a decisão proferida pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que repeliu a devassa com contundentes votos de seus julgadores.4

O voto condutor do acórdão que concedeu a ordem de habeas corpus para declarar a nulidade da decisão que “decretou a medida de busca e apreensão coletiva” é de autoria do ministro Sebastião Reis e acentua, textualmente, aspecto dessa ilegalidade de invasão judicialmente autorizada a domicílios em favela, que reproduzo para ilustrar o conflito entre «estado de direito» e «estado securitário»:

E, ainda que não se possa qualificá-la [moradia] adequadamente é necessário que os sinais que a individualizem sejam explicitados. Da mesma decisão, destaquei a existência do mandado judicial genérico, expedido com eficácia temporal ampla, geograficamente impreciso, que não se preocupa em determinar o fato concreto a ser apurado.” 5

No mesmo julgamento, o ministro Rogerio Schietti Cruz também salientou a notória ilegalidade da ampla e indiscriminada devassa, que reputou “providência utilitarista”, capaz de “sacrificar ainda mais as pessoas que, por exclusão social, moram em comunidades carentes de qualquer tipo de intervenção positiva do Estado”.6

Por sua vez, no tocante ao enviesamento epistêmico do processo penal, em especial quanto a providências probatórias relacionadas ao reconhecimento de pessoas, temos decisões paradigmáticas proferidas pelas duas turmas criminais do STJ, ilustrando o argumento com duas delas: Agravo em Recurso Especial n.º 1.940.381/AL. Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (decisão unânime). Rel.: Min. Ribeiro Dantas. Julgamento em: 14 de dezembro de 2021; Recurso Especial n.º 2.037.491/SP. Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (decisão unânime). Rel.: Min. Rogerio Schietti Cruz. Julgamento em: 6 de junho de 2023. Registro que depois de disponibilizado o acórdão do Agravo em Recurso Especial n.º 1.940.381, do qual foi redator do voto condutor, o Min. Ribeiro Dantas publicou trabalho sobre o tema: DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro; MOTTA, Thiago de Lucena. Injustiça epistêmica agencial no processo penal e o problema das confissões extrajudiciais retratadas. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, vol. 9, n. 1, p. 129-166, jan.-abr. 2023.7

As decisões mencionadas, todas proferidas pelas Turmas Criminais do STJ, e as recentes, emitidas pela 3ª Seção do mesmo tribunal (critérios para consideração judicial das confissões) estabeleceram parâmetros para interpretação/aplicação judicial de antigos institutos do processo criminal que há mais de século sempre foram usados de modo distinto, com a tradição judicial privilegiando o controle social repressivo arbitrário incompatível com os princípios constitucionais estabelecidos em 1988.

A mim me parece decisivo o fato de que a coerência e a segurança jurídica que são propósitos inegáveis do sistema de precedentes judiciais se compõem com a tutela efetiva dos direitos fundamentais quando, especialmente em matéria criminal, há necessário distanciamento entre as atividades de persecução penal e as de aferição da legalidade das práticas processuais penais.

Em regra, como os exemplos mencionados parecem indicar, os destinatários das mensagens normativas resultantes das decisões com caráter de precedentes, isto é, de «modelos decisórios orientados ao futuro», obrigatórios vertical e horizontalmente para juízes e tribunais criminais, não são apenas os integrantes do Poder Judiciário Criminal, como ainda as Polícias e o Ministério Públicos encarregados da persecução penal.

Ao não exercerem funções judiciais que Luigi Ferrajoli denominou de parapoliciais,8 as Turmas do STJ com competência criminal e a 3ª Seção estão localizadas à distância relativamente segura quanto às fortes pressões sociais que incidem sobre a investigação criminal e o anseio público de uma rápida e supostamente eficaz repressão penal.

Acerca dessas pressões convém mencionar novamente Ferrajoli para sublinhar o fenômeno da crise contemporânea da legalidade, a que o mestre italiano se refere em seu artigo sobre a derrota simultânea de Antígona e Creonte.

Ferrajoli sugere pistas de uma nova tensão entre «estado de direito» e «Estado do Medo», tensão que localiza na i) complexidade do sistema de fontes do direito e no declínio da soberania, ii) inflação legislativa e iii) e flagrante ruptura da linguagem jurídica.9

A expertise em matéria criminal tem habilitado os órgãos com competência criminal do STJ a exercer a jurisdição penal com foco na edição de «decisões-modelo» que disciplinam as práticas institucionais de persecução e repressão penal, as empurrando na direção do estado de direito e da tutela dos direitos fundamentais, sem prejuízo à imprescindível apuração de infrações e responsabilidades penais.

É bastante visível a discrepância, em termos teórico-práticos, entre a jurisdição criminal exercida por esses órgãos em relação à jurisdição criminal de primeiro grau da competência da Corte Especial do STJ.

Não raro as decisões da Corte Especial, tomadas em casos em que o STJ é o juiz natural da causa, enveredam pelos mesmos caminhos problemáticos pelos quais seguem os magistrados das instâncias ordinárias quando, a despeito do ainda ineficaz funcionamento do juiz das garantias, são chamados a coadjuvar as ações persecutórias das Polícias e dos Ministérios Públicos.

O desenho normativo ideal de um sistema de precedentes judiciais em matéria criminal deve ser refinado de tal modo que as pressões pela superação da tutela dos direitos humanos em favor da repressão imediata das infrações penais sejam filtradas, retendo-se o que em geral é puro senso comum, ao tempo em que a ponderação resultante de amplo debate e profunda reflexão decisória prevaleça.

Pelas características próprias de seu sistema, a garantia do contraditório na formação dos precedentes assume contornos diversos de quando é aplicada no contexto exclusivo da tutela do direito subjetivo.

Danyelle Galvão já o havia notado em sua tese doutoral, ao tratar da figura do amicus curiae.10

Mas não é só isso. Não basta adaptar o procedimento de formação de precedentes para salvaguardar as teses jurídicas da contaminação de influências não jurídicas e mesmo antijurídicas.

É possível que, formalmente, sejam realizadas audiências públicas, com ampla participação de atores com expertise, capazes de contribuir para um debate qualificado sobre os temas, e ainda assim resultarem ineficazes esses esforços, prevalecendo teses que violam frontalmente a Constituição, como no recente caso do Tema nº 1.068, decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da prisão no julgamento pelo tribunal do júri ou no do tristemente famoso julgamento do juiz das garantias.11

Penso que o que distingue as duas situações – a fixação de precedentes pelas Turmas e Seção Criminal do STJ, por um lado, e pela Corte Especial do mesmo tribunal e pelo STF, do outro – não é somente o maior domínio técnico da matéria, algo que não se pode negar, longe disso, por exemplo, aos Ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin, entre outros do STF.

O que pesa em desfavor da atual arquitetura constitucional é essa hibridização que confere aos juízes naturais de causas criminais, no STJ e no STF, o poder de fixar precedentes que não raro refletem a forma como esses mesmos Ministros conduzem os inquéritos e processos criminais sob sua presidência.

Em sendo humanos, é natural que nesses casos os Ministros atuem sob inspiração de vieses de confirmação que dissolvem os pretendidos efeitos virtuosos dos procedimentos formais de fixação de precedentes, como é a hipótese das audiências públicas.

O STF é a voz institucional da Constituição e é, pois, um órgão vocacionado à emissão de precedentes. Cabe-lhe, precipuamente, exercer essa função.

Assim, talvez a lição que se extraia dos tempos turbulentos pelos quais estamos passando, que também conferiram ao STF a relevante tarefa de defesa da democracia contra os ataques da extrema-direita, seja de que é urgente subtrair de nosso órgão de cúpula jurisdicional o máximo possível de competências criminais da ordem do 1º grau de jurisdição, para viabilizar o controle constitucional e o estabelecimento de teses em temas criminais que confirmem a força normativa da Constituição, ao contrário de diluir essa força.

Um sistema de precedentes judiciais confiável, estável e coerente, implementador da tutela efetiva dos direitos fundamentais, é incompatível com o exercício direto do poder penal, sempre tendenciosamente abusivo, afirmado pela autoridade de quem o exerce e não pela autoridade dos argumentos constitucionais.

Auctoritas facit legem é antigo ensinamento do baixo medievo europeu ocidental de que não nos devemos esquecer ao tratar de precedentes judiciais com vocação normativa.

No atual cenário, a preservação do desenho institucional de competências criminais originárias do STF pode assegurar apenas um resultado, como os dois julgamentos a que me referi – prisão no júri e juiz das garantias – evidentemente comprovam: a derrota simultânea de Antígona e Creonte.

 

Muito obrigado.


1 Palestra “O Sistema de Precedentes no Processo Penal Brasileiro”, proferida no dia 20 de setembro de 2024, na cidade de Curitiba/PR, no painel “Precedentes no Processo Penal”, no âmbito das XV Jornadas Brasileiras de Direito Processual – Sistema brasileiro de precedentes: homenagem ao Professor Luiz Guilherme Marinoni e à Professora Teresa Arruda Alvim, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Na oportunidade, foram apresentados resultados parciais da pesquisa levada a cabo sobre o fenômeno da transnacionalidade do processo penal, tema abordado no contexto do Projeto de I&D Corpus Delicti – Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional [Ratio Legis – Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa – UAL].

Doutor em Direito. Investigador do Ratio Legis – Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas, da Universidade Autónoma de Lisboa, e Professor visitante da Universidade Autônoma de Lisboa. Membro do Comité de Aconselhamento do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Consultor Sênior Associado do JusticiaLatinoAmerica – JusLat (Chile). Integra o Núcleo de Investigação Defensiva da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro – NIDEF. Consultor Jurídico. Ex-Professor Associado de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Consultor Jurídico. Currículo Lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/0340918656718376.

2 BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e segurança jurídica: fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 193.

3 KREBS, Hélio Ricardo Diniz. Sistemas de precedentes e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 258.

4 Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 435.934/RJ. Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (decisão unânime). Rel.: Min. Sebastião Reis Júnior. Julgamento em: 05 de novembro de 2019.

5 Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 435.934/RJ. Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (decisão unânime). Rel.: Min. Sebastião Reis Júnior. Julgamento em: 05 de novembro de 2019. p. 9.

6 Agravo Regimental no Habeas Corpus n.º 435.934/RJ. Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (decisão unânime). Rel.: Min. Sebastião Reis Júnior. Julgamento em: 05 de novembro de 2019. Voto do ministro Rogerio Schietti Cruz: p. 23-24. O ministro Schietti ressalta, igualmente, que a diligência de busca e apreensão coletiva, genérica e indiscriminada, “é ainda mais intolerável… porque, de modo expresso, reconhece que os alvos das medidas pleiteadas não integram facção criminosa voltada ao tráfico de drogas. Seriam, em verdade, pessoas coagidas a ceder suas moradas para depósito de substâncias ilícitas, armas e outros bens, como afirmado na decisão [que deferiu a busca e apreensão]” (p. 29, grifo do ministro).

7 PRADO, Geraldo. Curso de Processo Penal: Tomo I – Fundamentos e Sistema. São Paulo: Marcial Pons, 2024. p. 29.

8 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del garantismo penal. Trad. de Perfecto Andrés Ibáñez e outros. 4ª ed. Madrid: Trotta, 2000. p. 768-769. No Curso de Processo Penal, Tomo I, Fundamentos e Sistema, referi a observação de Ricardo Jacobsen Gloeckner acerca do fenômeno da expansão dos poderes judiciários e a articulação de um “complexo judiciário-militar que admite claramente a penetrabilidade entre polícia e judiciário.” (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal II: autoritarismo cool e economia política do processo penal brasileiro. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023. p. 40).

9 FERRAJOLI, Luigi. Antígona y Creonte, ambos derrotados por la crisis de la legalidad. Trad. do original por Augusto Fernando Carrillo Salgado e Julio César Muñoz Mendiola. Revista Cubana de Derecho, vol. 2, n.º 2, jul-dez, p. 09-29, 2022. p. 14.

10 GALVÃO, Danyelle. Precedentes Judiciais no Processo Penal. São Paulo: JusPodivm, 2022. p. 127.

11 Ações Diretas de Inconstitucionalidade n.º 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305/DF. Plenário do Supremo Tribunal Federal. Rel.: Min. Luiz Fux. Julgamento em: 24 de agosto de 2023. No item II da Ementa, ao tratar da regra do inciso XIV do artigo 3º-B do CPP (competência do juiz de garantias para decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa), consta: “Reconhecido o erro legístico e submetido o inciso XIV à interpretação sistemática, considerada a principiologia inspiradora do instituto do juiz das garantias, a Corte conferiu-lhe interpretação conforme a Constituição, para assentar que a competência do juiz das garantias cessa com o oferecimento da denúncia”. A expressão “erro legístico” comprova a tese da invasão do Poder Judiciário na esfera constitucional de exclusiva responsabilidade do Poder Legislativo (com possibilidade de veto à lei pelo chefe do Poder Executivo, o Presidente da República). Vale ressaltar que a Lei n.º 13.964/2019, que criou o juiz das garantias, foi vetada pelo Presidente da República em alguns pontos, mas não neste, apesar da resistência ao «juiz das garantias» compreensivelmente ofertada pelo então ministro da justiça do governo, Sérgio Fernando Moro, personagem protagonista de um dos casos de Lawfare mencionados no Curso quando ainda ocupava o cargo de juiz federal.