Geraldo Prado

 

  • INTRODUÇÃO

“O que acontecerá às nossas polêmicas quando já ninguém se lembrar delas? Quando já ninguém entender o significado das palavras com que tanta energia gastamos, tanto fôlego perdemos?”
É assim que o historiador português Rui Tavares inicia seu breve relato sobre uma das mais antigas experiências de polarização política e social do Ocidente, anterior às ideias de esquerda e direita, uma espécie de prenúncio do que viveríamos do fim da Idade Média aos dias atuais.
Por um bom tempo, Guelfos e Gibelinos protagonizaram o cenário político europeu em um nível tal de beligerância, entre os séculos XIII e XIV da nossa era, que ao final as pessoas que integravam os dois grupos não sabiam exatamente por que lutavam ou contra o que lutavam. Bastava que o outro lado fosse Guelfo para que um Gibelino se lhe opusesse e vice-versa.
Guelfos e Gibelinos eram partes que no Sacro Império Romano Germânico opunham os aliados fiéis à “casa nobre de Welf”, defensores de uma “federação de repúblicas” apoiada pelo papado, aos aliados à “casa de Hohenstoffen”, por sua vez fiéis ao Imperador e antagônicos à intervenção papal (na Itália eram denominados ghibellini).
Essa história, que pode soar estranha ao público brasileiro, é universalmente conhecida por meio da peça Romeu e Julieta, de Shakespeare, com o enfrentamento trágico entre os Capuletos e os Montéquios.
Quando observo o debate sobre os sistemas processuais no Brasil percebo que a polarização obedece à mesma lógica de Guelfos e Gibelinos que orienta os defensores de determinados pontos de vista sobre os elementos constitutivos ou característicos dos referidos sistemas: há quem sustente que o sistema acusatório ou o processo de estrutura acusatória decorre da constatação empírica de um princípio unificador, que seria a atribuição da gestão da prova às partes, com exclusividade, e que, portanto, seria inquisitório o modelo processual penal que conferisse ao juiz poderes probatórios, e esses seriam os nossos Guelfos; enquanto os Gibelinos ancoram sua opinião na noção de que seria a tripartição das principais funções processuais – acusar, defender e julgar – entre as principais personagens processuais – o acusador público ou particular, o acusado e seu defensor e o juiz ou tribunal – o signo distintivo dos sistemas.
Também como na Baixa Idade Média há discordâncias no seio de cada grupo.
Há os Guelfi Bianchi, os Guelfos Brancos, e os Guelfi Neri, os Guelfos Negros, isto é, existem aqueles que argumentam que há diferença entre um sistema adversarial, que veda o exercício judicial de poderes probatórios, e outros, que defendem um sistema acusatório que contemplaria poderes instrutórios judiciais meramente supletivos, de coadjuvação das partes, tornando assim ainda mais confusa a diferença entre os sistemas, além de contribuir para a crença na inutilidade prática – e teórica – dessas classificações.
Vale lembrar, por fim, a advertência ficcional que em Romeu e Julieta parece revelar o destino trágico dos esforços de síntese dos critérios classificatórios.
Na obra de Shakespeare, como em tese nas Escolas Brasileiras de Processo Penal, sugere-se que é necessário tomar partido para não sucumbir, ou seja, que se deve assumir um lado. Ou se é Guelfo, e é inadmissível qualquer concessão ao outro ponto de vista, ou se é Gibelino, e o mesmo raciocínio prevalece. E, como na Florença do século XIV, a adesão a um ou outro partido dependerá de onde o/a estudioso/a cursou a disciplina, ou das afinidades eletivas por esse, ou aquele professor.
Com o passar do tempo, o engessamento das posições e o acirramento das divergências, a realidade do sistema de justiça criminal é ignorada e perde-se a capacidade de reflexão acerca da validade das categorias que estão na base do raciocínio.
Trata-se de Sistemas como se estivéssemos no final do século XVIII. Além disso, toda a complexidade da adjudicação multiforme, nacional, transnacional e supranacional da responsabilidade criminal passa ao largo das análises, que se revelam, de fato, incapazes de dar conta daquilo que cabe à dogmática processual penal: oferecer critérios seguros e adequados aos atores do sistema de justiça criminal para que a apuração e efetivação da responsabilidade penal respeite a dignidade da pessoa humana e não seja fruto de arbítrios e caprichos pessoais e políticos.
Como escapar, pois, dessa armadilha do pensamento, que tem alto custo prático e que consiste em enfraquecer a contribuição da doutrina do processo penal a um processo criminal mais justo, humanizado e menos arbitrário?

 

SISTEMAS PROCESSUAIS COMO SISTEMAS COMPLEXOS

 

No curto espaço dessa exposição me valho de uma nova metáfora, essa mais próxima da realidade brasileira: o futebol.
O gênio uruguaio – e não falo de Obdúlio Varela, que nos tirou o título em 50, no Maracanã, mas de Eduardo Galeano – conta a história do esporte de uma forma muito leve, em seu Futebol ao Sol e à Sombra.
Leve, pero no mucho. Não é necessário voltar aos primórdios, na China, para acompanhar o raciocínio. Fiquemos na Inglaterra, e mais uma vez com Shakespeare, que em seu Rei Lear colocou na boca do conde de Kent a seguinte frase: “Nem que te deem uma rasteira, ordinário jogador de futebol?”
Pois bem, a razão do preconceito contra o futebol na Inglaterra, e mesmo de sua proibição, em 1314, pelo rei Eduardo II, foi apresentada por Galeano:

“O futebol, que já se chamava assim, deixava uma fileira de vítimas. Jogava-se em grandes grupos, e não havia limite de jogadores, nem de tempo, nem de nada. Um povoado inteiro chutava a bola contra outro povoado, empurrando-a com pontapés e murros até a meta, que então era uma longínqua roda de moinho. As partidas se estendiam ao longo de várias léguas, durante vários dias, à custa de várias vidas. Os reis proibiam esses lances sangrentos: em 1349, Eduardo III incluiu o futebol entre os ‘jogos estúpidos e de nenhuma utilidade’, e há éditos contra o futebol assinados por Henrique IV em 1410 e Henrique VI em 1547. Quanto mais o proibiam, mais se jogava, o que não fazia mais que confirmar o poder estimulante das proibições.”

Essa descrição do jogo é irreconhecível para nós. O futebol que nós jogamos, de Pelé e Marta, possui regras que foram estabelecidas a partir de 1846, em Cambridge, em 1863, em Londres, e depois, a partir de 1904, pela FIFA.
Não faria sentido algum analisar as partidas de futebol de hoje com base nos critérios relaxados que vigoravam no século XIV, na Inglaterra. Um empreendimento do gênero seria incompreensível aos nossos olhos, inexplicável teórica e praticamente.
No entanto, é o que ocorre com a polarização no âmbito do debate sobre os sistemas processuais no Brasil.
Os parâmetros invocados para descrever os sistemas e em seguida aplicar a análise à prática foram desenvolvidos no contexto da filosofia ocidental, de Aristóteles a Kant, descurando do fato de que todas essas distintas tradições filosóficas estavam apoiadas em uma visão de mundo incompatível com a realidade complexa percebida a partir do início do século XIX, percepção que alterou os fundamentos das teorias sobre sistemas até então empregados.
No Tomo I do Curso de Processo Penal, no capítulo dedicado ao estudo da categoria “Sistema”, parto de algumas premissas.
Primeiro: Coincido com Mario Losano – e com Rosmar Alencar – acerca da diferença entre ordenamento jurídico e sistema jurídico.
Segundo: Afirmo que, em determinado, momento, a partir do século XVI, juristas e filósofos europeus ocidentais recorreram à ideia grega de Systema adaptando-a para dar conta do “excesso de material romanístico e judiciário [de que] sofriam tanto os juristas dos séculos XIV-XV quanto os do século XVI.” [LOSANO]

Unidade e completude eram os ideais a que esses filósofos e juristas aspiravam, em busca da superação do modelo do corpus jurídico de origem romana para o de um «Sistema», conceito que pretende ser funcional à noção de uma aplicação do direito não caprichosa e, tanto quanto possível, harmoniosa, previsível e coerente.
Terceiro: Concordo com Joseph Raz que “[o]s sistemas jurídicos não são organizações sociais ‘autárquicas’”, mas é imprescindível levar em consideração que esses sistemas, incluindo o criminal, são determinados pelo sistema político a que pertencem. Não são pura abstração.
Quarto: Os sistemas jurídicos são formas de organização social, de caráter institucional, que funcionam de determinada maneira e que, pois, convocam o “domínio de coerências operacionais”, que são uma espécie de conhecimento acerca das articulações entre pessoas, instituições, institutos e normas jurídicas.
Quinto e mais importante: Os sistemas jurídicos são entidades complexas, indefiníveis por um único e ideal princípio, qualquer que seja ele.
Ainda assim, é do conjunto de suas características que é possível distinguir não somente os diversos sistemas jurídicos contemporâneos, os do presente e do passado, como particularmente os sistemas processuais penais. Para tanto, é necessário abandonar as antigas ideias, abrir-se a novas perspectivas, ângulos e instrumentos de análise e assumir, como o faz Raz, que em regra não existe um medidor de violações normativas capaz de estabelecer critérios apriorísticos de existência de um sistema.
Dois juízes criminais com idêntica competência funcional podem decidir dois casos em tese idênticos e chegar a conclusões opostas, ou ainda, o tribunal criminal pode reformar a sentença emitida por um juiz, acolhendo tese contrária à abraçada na decisão reformada. Tudo isso é próprio do Sistema. Todas as personagens atuam no âmbito do mesmo sistema, apesar de que, do ponto de vista lógico, algumas hajam decidido em conformidade com o ordenamento jurídico e outras não.
A percepção da complexidade social como condição de existência virtuosa da vida humana e social é indicativa de que os sistemas jurídicos são dinâmicos, plurais e sempre tendenciais, o que significa dizer que se distinguem uns dos outros pela tendência dominante em cada um deles, o que torna factível e útil a tarefa de os classificar.
A dissidência manifestada no voto vencido de ontem converte-se na posição majoritária adotada hoje pelo colegiado criminal, ambas expressões de ações que tem seu curso no âmbito de um determinado Sistema.
Mais do que isso, como procurei demonstrar no Tomo I do Curso de Processo Penal, o pluralismo jurídico contemporâneo é convergente com a noção de que, como afirma Raz, “[u]ma sociedade pode ser governada por dois sistemas jurídicos.”
A título de convite à reflexão, pela impossibilidade prática de no período curto dessa comunicação tratar daquilo que desenvolvi em mais de 400 páginas, menciono alguns dos argumentos que considero importantes para que se abandone o conflito entre Guelfos e Gibelinos do processo penal brasileiro, dando-se um salto em direção ao presente que é, marcadamente, tempo de uma «era digital», complexa e plural.
Assim, voltando às perspectivas de Aristóteles e Kant, vale destacar que até o início do século XIX, as várias explicações formuladas sobre o funcionamento do mundo pareciam fazer sentido. A ideia forte de «organização», presente nessas tradições filosóficas, dominava os dois maiores sistemas de explicação da realidade: a religião e a ciência.
Ao analisar o período correspondente às grandes mudanças de paradigmas, entre o final do século XVIII e o início do século XX, Pedro Paulo Pimenta recorre ao verbete dedicado à «vida» no “Dicionário de Ciências Naturais” publicado entre 1816 e 1830, para afirmar que os pensadores da época a associavam à «organização».

Vida é organização era a opinião dominante.

“A organização natural (que não é produto da técnica humana) se define como concomitante à presença da vida, que se discerne, por seu turno, na disposição sistemática da matéria”, era o modo como, na primeira metade do século XIX, a «vida» era percebida.
As noções de «organização» e «organismo» implicavam-se e eram concebidas como próprias da natureza, sendo o «corpo humano» sua expressão bem definida.

Sublinha Pimenta:

“Existe aí, portanto, uma correspondência estrutural entre a arquitetônica orgânica propriamente dita – a configuração das relações entre órgãos, ossos, fibras, nervos, filamentos, músculos – e a ordem molecular, em que reações químicas e leis físicas são os processos que constituem materialmente essa ordem geral.”

O corpo, ou seja, o corpus, era percebido como um sistema diferenciado dos demais sistemas.
Neste sentido, Pimenta se debruça sobre a filosofia Kantiana, sublinhando aspectos dessa correspondência na abordagem de Kant, em sua comparação entre a razão e uma estrutura orgânica.
Pela clareza da exposição e sua importância para a tese do Curso a respeito dos sistemas, reproduzo a passagem da análise de Pimenta:

 

“A metáfora da razão como organismo sugere muitas coisas, inclusive que ela tem uma história, mas também, e igualmente importante, que ela tem uma forma, isto é, pode ser compreendida e representada à maneira de um ser organizado, que se forma e se distribui num espaço delimitado. Quando Kant diz que há uma arquitetônica dos sistemas, sugere com isso um esquema de apreensão dos diferentes modos de organização da Filosofia, tal que os sistemas apareceriam como edificações, feitas com o tempo, que se erguem num espaço determinado.

O esquema racional organicista desfrutava de uma longa história de êxito intelectual, que remete a Aristóteles e que, valendo-se da comparação com a «vida» ou com como os organismos resistem à morte, pareceu bastante evidente por muito tempo porque se beneficiou de “imagens preconcebidas” da existência dos organismos vivos que era confirmatória da tese: a organização estrutural assegura melhores condições de sobrevivência daquilo que organiza e, portanto, é natural à experiência humana, tanto em sua consideração individual, quanto coletiva (a sociedade).
A «vida» não estaria sujeita as dinâmicas de transformação porque sua forma de organização era mais propícia à sua existência e reprodução. O mesmo, se supôs, ocorreria com as sociedades.
A estabilidade social que o direito deveria assegurar, conferindo certeza jurídica às expectativas sociais, seria condição de possibilidade da vida social como seria da vida animal.
Por esse ângulo, garantir ao credor a satisfação de seu crédito ou assegurar a punição do criminoso configurariam modos de preservação da vida social, porque essa somente poderia ser concebida como vida social organizada conforme um determinado princípio.
A maneira de encarar o princípio que está na base do raciocínio sobre a vida individual e a da sociedade, portanto, inclinava-se em favor da noção de estabilidade como condição de preservação do organismo e da sociedade.
A essa concepção opõe-se outra, bastante relevante para entendermos como evoluiu a compreensão sobre os sistemas em geral e, particularmente, sobre os sistemas sociais.
Como universo cultural, os sistemas sociais são obrigatoriamente plurais, internamente diversificados. Mesmo as teorias são elas próprias objetos culturais. Mario Bunge ilustra este ponto de vista com a seguinte explicação, que destaca a variedade de proposições:

“Por exemplo, uma teoria se compõe de proposições ou enunciados, seu entorno é o corpo de conhecimento ao qual pertence (por exemplo, a álgebra ou a ecologia) e a sua estrutura é a relação de implicação ou consequência lógica.”

Os sistemas sociais são dinâmicos, afirma Mario Bunge. E o são porque, em virtude de seu permanente funcionamento, estão em constante transformação, fruto de sua própria história evolutiva.
Vale dizer, para melhor compreensão do tema, que os sistemas sociais são sistemas concretos compostos por pessoas e caracterizados pela existência de um entorno imediato material. Exemplo desse entorno, no caso da justiça criminal, são os prédios dos tribunais e das delegacias de polícia, as corporações policiais, judiciárias, de advogados e defensores e do Ministério Público.
Além disso, os sistemas sociais são dotados de uma precisa estrutura ou organização, que não é fixa, e que consiste no conjunto de relações (conexões) entre os elementos do sistema, consideradas as suas propriedades.
Os sistemas sociais estão em estado de permanente mudança. O sistema de justiça criminal é um sistema social.
Os sistemas sociais são sistemas complexos ou, como afirma Mario Bunge, objetos complexos “cujos componentes estão interrelacionados e não isolados.”
Não existem sistemas sociais puros. Somente a matemática e a lógica são abstrações puras, leciona com razão Mario Bunge, de sorte que não faz sentido algum, sob qualquer perspectiva, falar de sistemas processuais puros.
A afirmação de que existe ou existiu, ainda que no plano meramente conceitual, um «sistema acusatório puro» ou um «sistema inquisitório puro» é um erro teórico que deriva de abstrações fundadas somente na imaginação, sem respaldo na realidade.
Assim, um sistema criminal que priorize a proteção da dignidade das pessoas não é incompatível com sentenças condenatórias, da mesma forma que um sistema criminal que priorize a punição dos autores das infrações penais pode contemplar – e de fato contempla – a possibilidade de sentenças absolutórias.
O que difere um sistema criminal do outro é a maneira como incide o protagonismo das suas finalidades primeiras: i) na decisão política acerca das regras de direito penal e processual penal que são produzidas (estágio deliberativo); ii) na decisão político-jurídica de como a responsabilidade penal deve ser apurada e arbitrada (estágio executivo); iii) na decisão político-jurídica de distribuição de competências administrativas e jurisdicionais (estágio executivo); iv) e na maneira como as instituições se organizam para aferir essa responsabilidade (estágio executivo).
O fato de as normas jurídicas primárias mais importantes de determinada sociedade estabelecerem limites à atuação judicial, quer probatória, quer persecutória, não impede que, na prática, juízes resistam a essa orientação, interpretando e aplicando fatos e direito de forma enviesada.
Isso em si não desnatura o sistema criminal, que, se predominantemente dispuser de controles internos aptos a corrigir o enviesamento inquisitório, será o sistema acusatório dessa sociedade concreta em seu específico tempo histórico.
Será diferente, no entanto, se as normas jurídicas primárias constitucionais e convencionais que estabelecem limites à atuação judicial vierem a ser violadas pelo órgão do poder judiciário encarregado, em nível superior, pela interpretação, aplicação e fiscalização da Constituição.
Neste caso, por exemplo, a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) como órgão de investigação criminal, de punição cautelar e de acusação, ainda que indireta, insere-se naquela esfera que Raz denomina, no campo da “tese das fontes”, de “estágio deliberativo” da formação das normas jurídicas e constituição do sistema jurídico.
Afirma Raz que “[n]o debate acerca de como os membros de uma sociedade devem se conduzir, pode-se distinguir entre o estágio deliberativo e o executivo.”
Acrescenta esse autor: “No primeiro, o mérito entre diferentes cursos de ação é avaliado. No segundo, o estágio executivo, a avaliação é excluída. A questão sobre o que fazer ainda se impõe, mas dessa vez como um problema executivo.”
É fundamental não confundir o termo “executivo”, usado por Raz, como mero cumprimento administrativo do direito.
O sentido buscado pelo autor é o de interpretação e aplicação do direito conforme as pautas fixadas no estágio deliberativo, que é aquele precedente no qual se coloca a questão de “saber que ação é a mais justa”, isto é, o momento de definir, entre as soluções políticas possíveis, qual ou quais são aquelas que constituirão as normas de ação exigíveis das pessoas.
Quando o tribunal de controle de constitucionalidade passa a agir deliberativamente, o que em determinadas circunstâncias, bastante excepcionais, o próprio ordenamento jurídico pode autorizar, corre-se o risco do abandono das regras jurídicas postas de forma legítima, que são indevidamente substituídas pela deliberação do STF.
Enquanto um juiz criminal pode, sistematicamente, abandonar as pautas do devido processo legal e abusar do seu poder para agir de forma inquisitória, sem transformar o sistema acusatório, o Supremo Tribunal Federal, ao agir da mesma forma, converte o sistema acusatório em inquisitório.
Isso ocorre ainda nos casos em que, violados os parâmetros constitucionais que definem o sistema acusatório, o STF eventualmente venha a absolver o acusado.
Sobre esses parâmetros de acusatoriedade trato ao longo de todo o Tomo I do Curso de Processo Penal, sublinhando sua complexidade, que não cabe na rixa entre Guelfos e Gibelinos, o que explica que fora do Brasil essa discussão perca grande parte de seu fôlego.
De toda sorte, o ponto de partida da minha análise é o do reconhecimento da jurisdição penal como poder, um poder que, historicamente, não foi apenas da ordem das decisões jurisdicionais – iurisdictio -, mas que serviu ao governo das sociedades – gubernaculum.
Defendo que somente uma compreensão histórica crítica da jurisdição penal está apta desvelar os regimes jurídicos concretos dos atores processuais em cada Estado e mesmo no contexto da internacionalização da jurisdição penal.
Fora disso o que há são visões ideais do funcionamento dos sistemas criminais, descoladas da realidade.
Concluo, ainda, com outra advertência mencionada ao longo da obra. O caráter político da jurisdição penal cobra seu preço. A opção pela inquisitoriedade é sempre um salto na direção do arbítrio, na medida em que é sintoma de uma sociedade política tendencialmente autoritária, antidemocrática.
É essencial, pois, que o STF seja o guardião do Sistema Acusatório. Não lhe resta alternativa, pois em não o sendo, contribuirá de maneira decisiva para a erosão de nossa democracia.

 

Muito obrigado.