“Sabemos, portanto, que as violências perpetradas pelo regime autoritário foram amplamente disseminadas. Mas por que apenas algumas delas passaram a ser nomeadas como políticas? Por que somente alguns sujeitos e grupos foram reconhecidos como vítimas da ditadura? Ao perseguir essa resposta, podemos compreender as razões pelas quais a sociedade brasileira, durante a redemocratização e ao longo da Nova República, passou a repudiar de forma simbólica apenas certas formas de violência – ou melhor, passou a repudiar a violência quando ela era destinada a determinadas pessoas e corpos.”
[…] “Afinal, por que determinados depoimentos de violência são socialmente apreendidos como legítimos – isto é, encontram quem neles acredite – enquanto outros permanecem sem qualquer acolhida?”
“Mas como e por que a democracia brasileira, conquistada depois de mais de duas décadas de ditadura, convive com uma separação tão radical entre uma tortura inadmissível e uma tortura desejável?”
Lucas Pedretti – A transição inacabada.

 

Geraldo Prado
Universidade Autónoma de Lisboa (Ratio Legis)

 

Resumo

 

No momento mais violento da ditadura militar brasileira, no período que se seguiu à edição pelo Presidente da República, marechal do Exército Artur da Costa e Silva, um dos responsáveis pelo golpe de estado de 1964 no Brasil, de Ato Institucional (AI-5) suspendendo a aplicação da Constituição e das garantias do processo, o Supremo Tribunal Federal (STF), corte constitucional brasileira, fixou entendimento jurisprudencial (precedente), por meio do qual validava processos criminais nos quais era expressamente reconhecido que o exercício do direito de defesa por profissionais – advogados e defensores públicos – havia sido deficiente. O posicionamento do STF foi editado em 03 de dezembro de 1969 (Súmula 523), quando por força do AI-5, editado em 13 de dezembro de 1968, o regime ditatorial se expandia, tendo levado à cassação de três ministros do STF em janeiro de 1969. Um pouco antes, o próprio STF decidira sobre a competência para julgar o ex-Presidente João Goulart. A dúvida do Supremo Tribunal Federal era “se prevaleceria a competência da justiça comum, conforme o Al-2, que tinha vigência até 15 de março de 1967, ou do próprio STF, com base na Constituição de 1967, promulgada em 24 de janeiro de 1967.” O artigo situa as iniciativas – edição do AI-5 e da Súmula e a relativização da competência – no que se convencionou denominar “legalidade autoritária”, em virtude da qual a perseguição aos adversários da ditadura também era realizada nos tribunais criminais, com o emprego de processos criminais sem chance de defesa real dos acusados. Desde então, e apesar da retomada da democracia, com a Constituição de 05 de outubro de 1988, a Súmula é aplicada, ignorando-se que a Constituição de 88 exige a “ampla defesa” dos acusados como garantia de validade das condenações criminais. No âmbito da competência, pior, estabeleceu-se hipótese flagrantemente inconstitucional da «competência aparente». A tese do estudo é de que estes posicionamentos do STF devem ser revistos porque são incompatíveis com a Constituição democrática.
Palavras-chave: Direito de defesa; Regime político de exceção; Ditadura; Constituição democrática; Supremo Tribunal Federal; Garantias do processo criminal.

 

  • INTRODUÇÃO

 

Gostaria de agradecer ao IBCCrim pelo convite para participar do 30º Seminário Internacional e pelo prazer de compartilhar essa mesa com Samara Pataxó. O Instituto tem 32 anos, fundado em São Paulo na sequência dos homicídios praticados por agentes das forças de segurança no Presídio Carandiru. Passadas três décadas, as circunstâncias trágicas que motivaram sua criação oferecem a oportunidade para uma reflexão conjunta sobre «políticas da memória e dogmática processual-penal», interligando episódios da nossa história recente a interpretações e decisões judiciais sobre temas cotidianos do processo penal. Políticas da Memória aplicadas a esse campo é também o objeto da tese de doutorado de Antonio Pedro Melchior, que se converteu no livro “Juristas em resistência: memória das lutas contra o autoritarismo no Brasil”. Os 30 anos do Seminário Internacional oferecem a oportunidade de festejar São Paulo como importante polo do pensamento e das ações de resistência às diversas manifestações de autoritarismo, do passado e do presente. São Paulo é um centro difusor de iniciativas de que o IBCCrim, na minha opinião, pode reivindicar uma fraterna ancestralidade. Bem antes de 1992, para ser mais preciso, em 1969, é fundado o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), instituição que, nas palavras de Julia Gumieri, surgiu da iniciativa de:

…professores e professoras que, devido à perseguição ideológica da ditadura no ambiente universitário, haviam sido afastados de suas funções. O Cebrap pretendeu desenvolver análises e subsidiar intervenções na realidade brasileira a partir da produção de conhecimento crítico e independente sobre os problemas sociais do país.

Por sua vez, em 8 de agosto 1972, foi instituída “…a Comissão Justiça e Paz (CJP) da Arquidiocese de São Paulo, capitaneada por d. Paulo Evaristo Arns”.
Após os homicídios praticados contra o jornalista Vladimir Herzog, o operário Manoel Fiel Filho e o Tenente José Ferreira de Almeida, nas instalações do DOI-CODI, as atividades confluentes da Comissão Justiça e Paz e do CEBRAP tornaram a sede deste instituto alvo de um incêndio criminoso provocado por agentes da ditadura em retaliação às denúncias das torturas praticadas pelo regime autoritário.
Ainda durante a ditadura, em 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, é lançado publicamente o Movimento Negro Unificado (MNU), “referencial histórico na luta contra a discriminação racial no país”.
A resistência dos estudantes de São Paulo – da USP e de outros centros – é marcante, especialmente quando recordamos que tiveram lugar sob a vigência do Decreto 477, que garroteou as associações e manifestações estudantis. É dos anos 70 a revista O Balão, do Centro Acadêmico Lupe Cotrim, que tinha entre seus redatores-alunos de arquitetura os irmãos Paulo e Chico Caruso e a Laerte.
Hoje, além do IBCCrim temos ainda, com sede em São Paulo, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e a Comissão Arns.
Esses institutos são essenciais não apenas como fomentadores do saber jurídico e expressão de uma memória que orienta nossas escolhas ao iluminar o passado, mas, de certa maneira, principalmente, porque funcionam como testemunhas/sobreviventes de um passado autoritário que insiste em ser presente, dando conta da encruzilhada em que nos encontramos e dos enormes desafios que temos pela frente.

Ser testemunha.

Janaína de Almeida Teles, ao tratar da nossa dívida para com mortos e torturados das ditaduras e democracias, afirma a ambiguidade da etimologia do testemunho: “testis é a palavra que indica o depoimento de um terceiro em um processo judicial e supertes indica a pessoa que atravessou uma provação, o sobrevivente.” Acrescenta Janaína A. Teles que: “O conceito de mártir também está próximo dessa acepção de sobrevivente; em grego, martyrus significa testemunha.”
O IBCCrim, em sua trajetória, é herdeiro dessa função testemunhal crítica, que não pactua com as «acomodações políticas» sobre um passado que converte mentira em verdade porque a verdade incomoda.
Sabemos que a linguagem não dá conta do luto, mas as palavras devem servir para algo, do contrário, para que falar?!
Começamos falando da memória oficial de nossos mortos e desaparecidos que registra “434 pessoas consideradas as vítimas do regime” empresarial-militar de 1964-1985, mas, de certa forma, ignora mais de 8.350 indígenas mortos por agentes da ditadura no mesmo período, além de não ser clara sobre mais de 1.200 casos de mortes, torturas e prisões arbitrárias de lavradores em idêntico contexto.
A repressão à população LGBTQIA+ e à população negra, entre 1964 e 1985, foi igualmente brutal e nada velada.
No entanto, o olhar político-jurídico não deve se desviar do fato de que chacinas patrocinadas pelo poder fazem parte da vida nacional desde sempre, como alerta Pedretti.
Na minha cidade, o Rio de Janeiro, a crônica cotidiana sequer se dá ao trabalho de mencionar o nome das crianças e adolescentes, em geral, moradores da periferia, que perdem a vida quando são encontradas pelas balas dos fuzis de criminosos “fardados ou não”.
É esse pano de fundo que justifica a pergunta: em que ponto, afinal de contas, as políticas da memória encontram-se com a aplicação cotidiana das regras de processo penal?

Lembrando Pedretti a respeito das torturas:

“Mas como e por que a democracia brasileira, conquistada depois de mais de duas décadas de ditadura, convive com uma separação tão radical entre uma tortura inadmissível e uma tortura desejável?”

O discurso acadêmico processual penal não é desinteressado, tampouco descolado da realidade política do seu tempo, o que converte as posturas teóricas do objetivismo epistemológico em instrumentos que, em momentos específicos e cruciais da história dos povos, podem ser usados para legitimar práticas abusivas.
A teoria pode respaldar abusos e crueldades, legitimar “torturas desejáveis”, justificar o emprego processual de provas obtidas por meios ilícitos, a atenuação de exigências probatórias dirigidas à acusação – os diferentes standards de prova conforme distintas infrações penais – e, claro, o exercício judicial de poderes probatórios, prática que mesmo uma pouca atenta historiografia processual penal identifica nas justiças criminais subservientes aos poderosos de plantão.
Uma cegueira deliberada da teoria processual penal termina sendo cúmplice silenciosa do arbítrio.
Ao nível do exercício do poder político é compreensível o recurso aos «esquecimentos», aos «apagamentos» da memória social, porque somente no contexto dessa amnésia intelectual, desse “esfacelamento da memória”, expressão da Janaína A. Teles, análises dogmáticas pretensiosas podem frutificar, satisfazendo o ego de seus autores ao preço do alienamento da realidade da persecução penal.
No limitadíssimo tempo da minha comunicação vou citar apenas dois exemplos bastantes prosaicos, relacionados ao processo penal: a questão da competência – se relativa ou absoluta, e que consequências jurídicas derivam da incompetência – e o exercício reconhecidamente deficiente do direito de defesa, tratado no verbete n.º 523 das Súmulas do Supremo Tribunal Federal (STF) como causa de nulidade apenas se comprovado o prejuízo.

“No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”.

As mencionarei ligando-as ao golpe de estado de 1964, mas a lógica que as sustenta é anterior à ditadura empresarial-militar e está presente em nossos dias, na espantosa tese, que de jurídica pouco tem, da «competência aparente», a relativizar os efeitos da incompetência absoluta, e da validação jurídica de processos criminais com defesas deficientes em um regime jurídico-constitucional que expressamente contempla o direito à ampla defesa.
Como prometido, quero expor estes temas os associando às políticas da memória e diretamente ao golpe de estado de 1964.
O meu objetivo é incentivar as pessoas interessadas em estudar e trabalhar com processo penal a articularem no dia a dia das suas atividades profissionais as dimensões da arqueologia do saber e da genealogia do poder – tão caras a Michel Foucault.
É pobre o direito que vive quase exclusivamente da interpretação das decisões dos tribunais, quaisquer que sejam os tribunais e quaisquer que sejam as decisões.
O golpe de estado de 1964 teve inúmeras facetas. Uma das mais notáveis, sem dúvida, caracterizou-se por essa permanente tensão entre o propósito de sua institucionalização, para lhe conferir “forma jurídica” e apelar à criativa noção de “normalidade”, e o desejo incontido de arbítrio que era dirigido também contra as “novas formas institucionais”.
A ditadura, imediatamente, percorreu a trilha dos arranjos jurídicos, sem dúvida que muito por incentivo dos juristas que aderiram ao autoritarismo.
Não é por outra razão que a tristemente famosa reunião dos 23 membros do Conselho de Segurança Nacional (CSN), em 13 de dezembro de 1968, realizada por iniciativa do então presidente, marechal do Exército Artur da Costa e Silva, para publicizar a unidade de seu governo em torno do Ato Institucional que pretendia editar – e que veio a ser o AI-5 – colheu declarações de vários de seus ministros censurando o hipotético açodamento do ex-presidente Humberto de Alencar Castelo Branco em seu objetivo de institucionalizar o regime autoritário iniciado quatro anos antes. A ditadura implantada por Castelo Branco era ainda branda em consideração às expectativas da linha-dura do regime. O Chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), membro do CSN, era o general Emílio Garrastazu Médici, que viria a comandar o III Exército e a presidir o Brasil a partir de 1970.

Compreender o verbete nº 523 da Súmula do STF que esvazia o direito de defesa implica perceber os efeitos do AI-5, dos atos anteriores e dos atos suplementares no campo jurídico. 

O brasilianista Thomas Skidmore lembra que “em janeiro de 1969 três ministros do Supremo Tribunal Federal foram forçados a se aposentar: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. O presidente do Tribunal, Ministro Gonçalves de Oliveira, renunciou em sinal de protesto”.
O processo e julgamento dos crimes contra a segurança nacional ou contra as Forças Armadas foram transferidos para a competência do Supremo Tribunal Militar (STM) e “dos tribunais militares de categorias inferiores”.
Nem mesmo o general Pery Bevilacqua, ministro do STM, escapou da perseguição da linha-dura da ditadura, agora revitalizada pelo AI-5: o ministro foi aposentado compulsoriamente em 1969 porque fora considerado “complacente demais com os réus”. Em linguagem atual, Bevilacqua seria um ministro garantista. A edição do AI-5 se deu no que marcou o início da «ditadura dentro da ditadura», seu momento mais violento, com o Presidente da República, marechal do Exército Artur da Costa e Silva, suspendendo a aplicação da Constituição e das garantias do processo.
Foi nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal (STF), corte constitucional brasileira, fixou entendimento jurisprudencial, por meio do qual validava processos criminais nos quais era expressamente reconhecido que o exercício do direito de defesa por profissionais – advogados e defensores públicos – havia sido deficiente. O posicionamento do STF foi editado em 03 de dezembro de 1969 (Súmula 523), depois da expansão do regime ditatorial que havia levado à cassação dos três ministros.
A “legalidade autoritária” propiciou a perseguição aos adversários políticos da ditadura no âmbito dos tribunais criminais com o emprego de processos jurídicos sem chance real de defesa dos acusados.
Alguns alvos evidentes do AI-5 identificam-se na sequência de acontecimentos que imediatamente lhe antecederam, entre 10 e 11 de dezembro de 1968: a rejeição pela Câmara dos Deputados da licença para processar os parlamentares Márcio Moreira Alves e Hermano Alves recolocou o Congresso na “alça de mira” da linha-dura e a decisão do STF de libertar 81 estudantes que haviam sido presos durante os protestos realizados em julho daquele ano contribuiu para a eleição de parte do Judiciário como vilão a ser enfrentado. Antes, no entanto, o processo de perseguição política com apoio das instâncias judiciárias havia sido deflagrado e impulsionado por outro ato institucional, o AI-2.
Este segundo ato institucional ofereceu ocasião de remanejamentos no interior das burocracias judiciárias então existentes, com o afastamento de juízes fiéis à Constituição de 1946, promulgada em seguida ao fim do Estado Novo, além de ter ampliado o número de integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF). O STF passou de 11 (onze) para 15 (quinze) ministros.
O alinhamento de muitos setores da magistratura com o novo governo foi imediato, provocado não apenas pela ambição pessoal que seria recompensada pelos bons serviços prestados à ditadura recém implantada, mas também por uma identidade conservadora e autoritária presente neste estamento desde os tempos do Brasil colônia.
Vanessa Dorneles Schinke documentou a colaboração escancarada e espúria de magistrados com os órgãos da repressão, em especial com o Serviço Nacional de Informações.
Juízes, para caírem nas graças dos poderosos de ocasião, oficiavam ao SNI dando conta de terem identificado em seus processos pessoas com comportamento suspeito de subversão. Na imensa maioria dos casos tratava-se de mera dissidência política.
O caso dos sequestros dos cidadãos uruguaios Lilián Celiberti e Universindo Díaz figura entre as páginas vergonhosas da crônica judiciária brasileira.
Este é o contexto em que o tema da competência chega ao STF. Ainda hoje, em todo o sistema judicial reverberam decisões sobre competência em matéria criminal que contrariam o texto expresso do inc. LIII do art. 5º da Constituição da República, que estabeleceu que a competência jurisdicional é requisito de validade jurídica dos processos criminais.
A tolerância com a incompetência, no entanto, tem sua história e não está ligada tão somente a aspectos pragmáticos da administração das causas penais.
O golpe de estado militar-empresarial forçou ao exílio as lideranças políticas depostas, que foram perseguidas implacavelmente pelos militares e civis golpistas.
Inquéritos foram instaurados com o propósito de conferir ares de legalidade e institucionalidade à nova ordem jurídica de exceção.
Investigar, processar e punir formalmente as autoridades depostas era essencial para a imagem pública que os golpistas queriam difundir com amplo apoio das grandes empresas de comunicação social.
Daí, evidentemente, era necessário investigar o ex-presidente João Goulart, o que implicava na determinação do juízo competente para o seu eventual julgamento.
A questão da irrelevância jurídica da competência aparece neste contexto, criado pelas próprias forças políticas da ditadura, na medida em que o AI-2 estabelecia, em tese, a competência da justiça comum e a Constituição de 1967, outorgada nesse contexto, estipulava a competência do STF.
Cabia ao Supremo deliberar sobre a competência. É possível rastrear a esse importante precedente histórico a teoria do tanto faz em matéria de competência, parente em linha reta da teoria da competência aparente.
O retrato desse julgamento, apresentado por Vanessa Dorneles Schinke, é eloquente comprovação da tese da manipulação política das categorias do processo penal que converte o processo criminal em mera peça de teatro, com final conhecido do público por antecipação. O importante era assegurar que João Goulart fosse condenado, sendo irrelevante a instância se esse resultado pode estar assegurado a priori. E, cereja do bolo, sob a ótica dos juízes do STF, a questão da incompetência não era pertinente para o exercício do direito de defesa.
Entre os ministros votantes mais entusiasmados com a tese da relatividade da competência absoluta – é importante frisar o absurdo, verdadeira contradição em seus próprios termos – encontrava-se o Ministro Carlos Thompson Flores, que chegara ao STF em consideração à sua atuação no Tribunal do Rio Grande do Sul nos primórdios do golpe de estado.
A prova do impacto deletério da decisão, em circunstâncias um tanto assemelhadas, pode ser observada nas decisões proferidas em processos e incidentes envolvendo a (in)competência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) nos casos do então ex-presidente Lula no âmbito da Operação Lava Jato.
Penso que é válido reproduzir aqui o texto extraído do excelente livro de Vanessa Dorneles Schinke, que fale por si: 

A dúvida que chegara ao Supremo Tribunal Federal era se, para julgar o ex-Presidente João Goulart, prevaleceria a competência da justiça comum, conforme o Al-2, que tinha vigência até 15 de março de 1967, ou do próprio STF, com base na Constituição de 1967, promulgada em 24 de janeiro de 1967.
O conflito dava-se entre duas disposições legislativas criadas pelo regime autoritário, cuja suposta legitimação partia de uma fictícia invocação do poder constituinte originário. Ainda assim, o judiciário entendeu ser legítimo aquele projeto. Conforme manifestação do ministro relator (Ministro Gonçalves de Oliveira): ‘Devo dizer que estamos discutindo uma simples norma de competência Do ponto de vista de garantia de defesa, a causa não tem relevância. Vamos, apenas, fixar uma norma processual constitucional’. ”
O ministro Carlos Thompson Flores, ao decidir pela competência da justiça federal, conforme dispunha o Ato Institucional nº 2, afirmou: ‘E assim considero porque em nenhum momento do vigente Super Estatuto se procurou alterar a situação jurídico-constitucional anterior’. Nesse mesmo sentido, são fartos os exemplos no acórdão: ‘o ato é também de natureza constitucional’; ‘o AI é ato igual à Constituição’; ‘a questão é constitucional, o que afirmamos é a sobrevivência da Constituição após o AI’.”

É interessante contextualizar a empolgação de Thompson Flores com o AI-2 e a Constituição de 1967, sinalizando a reverência ao estado de exceção que, em sua projeção sobre os casos penais, é dependente do afrouxamento das regras de competência.
A ditadura ficou no passado, mas não, necessariamente, suas permanências jurídico-processuais.
Associar Políticas da Memória ao direito processual penal serve para revelar os laços que unem as categorias do processo penal ao mundo da vida.
A revisão do verbete nº 523 das Súmulas do STF é um dever do Supremo Tribunal Federal. Estabelecer rigoroso regime jurídico de validade do processo apenas nos casos em que haja sido respeitada a regra de fixação da competência é igualmente necessário.
Basta lembrar que a restrição ao direito de defesa em matéria criminal e a relatividade da incompetência absoluta foram consagradas em um tempo em que o próprio “direito havia saído forçadamente de férias”. Dedico o artigo à memória de Dom Hélder Câmara, em memória aos 25 anos completados de seu falecimento, à memória dos Ministros Hermes de Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva e a todas as vítimas dos processos criminais abusivos ao longo da nossa história. Afinal, um dia essas “férias forçadas do direito” haveriam de acabar, pois, como anteviu nosso Prêmio Camões Chico Buarque de Hollanda, “Apesar de você amanhã há de ser outro dia” e esse dia enfim chegou.