Interessante tema suscitado por advogado me fez voltar ao que escrevi em “Sistema Acusatório”, lá se vai mais de uma década.

Com efeito, a partir da convergência entre oralidade, publicidade e documentação dos atos registrados em meio digital, no âmbito da Operação Lava Jato, mas que pode tranquilamente referir-se a qualquer processo criminal no Brasil, constato a tendência de “enquadramento de câmera” das pessoas que prestam declarações em juízo, em especial os acusados, em um contexto de produção de sentidos que sinaliza para uma “culpabilização via imagem”, em contrariedade à presunção de inocência.

Há muitas explicações que vão desde a mais singela, qual seja, a dificuldade com recursos tecnológicos que tenham maior abrangência, em termos de captação de imagem e som e permitam o enquadramento de todos os participantes da audiência, incluindo o MP e o juiz, até mesmo à adoção de estratégias que desequilibram a paridade de armas, ao expor o acusado em visível inferioridade diante do acusador e do juiz, de sorte a recuperar a conhecida “pena de baquillo”, agora sob o formato de uma “pena de exposição ao banco dos réus virtual”.

Lembro que ao tratar do assunto, na obra Sistema Acusatório, invoquei o magistério de Habermas para rastrear a trajetória liberal do princípio da publicidade, “tornando as decisões políticas sujeitas à revisão perante a opinião pública” [1], até chegar aos dias de hoje, quando o controle empresarial dos meios de comunicação de massas, a lógica da competitividade e do mercado que orienta a atuação deles e a distorção da própria noção de publicidade, antes de incentivar a participação democrática da maioria das pessoas relativamente aos negócios da sua cidade e de seu país, anula essa participação, porque constroem uma nova realidade, paradoxalmente virtual ou espetacular.

Na oportunidade igualmente invoquei a experiência de Garapon, que advertia para o poder (contrapoder) da mídia e a maneira como é empregado especialmente nos casos penais[2] e de Pierre Bourdieu, que analisou a influência da sociedade espetacular, da ansiedade midiática e da informação como mercadoria de consumo sobre os juízes, destacando que há aqueles que nem sempre são os mais respeitáveis do ponto de vista das normas internas do campo jurídico mas que podem servir-se da televisão para mudar as relações de força no interior de seu campo e provocar um curto-circuito nas hierarquias internas[3].

Evidente que se a publicidade midiática do caso penal pode ser convertida em instrumento de alteração da percepção da realidade sobre as condições em que se desenvolve o processo penal, a associação dessa exploração midiática com imagens das audiências e sessões, fragmentos do procedimento impossíveis de serem encaixados no conjunto de provas produzidas, poderá servir para produzir ou consolidar pré-compreensões de natureza condenatória.

Isso se deve ao fenômeno bem observado por Muniz Sodré, que diz com a representação de mundo própria de um tipo de conhecimento comunicacional acrítico, regido por uma consciência em tese atemporal, que substitui os critérios de verdade que devem orientar a decisão das causas penais. As pessoas não devem ser (pré)condenadas pelas aparências, que podem ser artificialmente elaboradas. Elas serão ou não condenadas após o balanço equilibrado e justificado do conjunto de provas que venha a ser produzido.

O fragmento de imagem que se transmite, com “foco” no acusado inferiorizado e a voz ao fundo, da autoridade inquisidora, cobrando-lhe uma verdade que alega que o réu está deliberadamente suprimindo, tem o poder de substituir todas as atividades probatórias perante a opinião pública.

Correndo o risco de sintetizar em demasia a opinião de Muniz Sodré, posta relativamente à ciência da comunicação, vale a transcrição da crítica que situa o desafio da construção do discernimento no lugar da ilusão de realidade:

“Ao mesmo tempo em que se revela como indiscutível a importância das ciências no mundo tecnológico de hoje, aparece o imperativo ético-político de se indagar sobre o estatuto de ser dos objetos e conceitos científicos, tendo-se em vista os macroefeitos de afetação que exercem sobre a vida humana quando conjugados à tecnologia planetária. No tocante à midiatização, é crucial a diferença entre olhar e ver, ouvir e escutar, assim como entre a pura emoção e o sentimento, que é a sensibilidade lúcida, porque nessa diferença se constrói o discernimento, ou seja, outro nome para a apreensão crítica do mundo.” [SODRÉ, Muniz. A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 120].

Alguns cuidados, todavia, podem ser tomados para evitar que o manejo das imagens produza uma desigualdade de posições e oportunidades no âmbito do processo penal. Vale lembrar aqui, com efeito, as lições de Hassemer, sobre a configuração do caso penal e a importância da compreensão cênica.

Em obra clássica alertava o saudoso filósofo e penalista:

“A fase de produção [do caso] é caracterizada pela compreensão cênica, a qual, diferentemente da compreensão textual, tem que dar conta de uma série de complicações. Os princípios nela contidos e as regras individuais podem ser compreendidos como modelos de compreensão cênica.” [HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 191]

(…)

“O modelo de compreensão cênica e o seu caráter obrigatório para os participantes, a sua ‘validade’ como regras jurídicas, são pressupostos necessários para que a compreensão tenha êxito e para que os direitos dos participantes no processo somente sejam colocados em perigo nos limites mais estritos possíveis. O Processo Penal, no qual se exerce a força em que se discutem consequências drásticas para as pessoas, é evento perigoso e precário – não só para o acusado, mas também por exemplo, para a vítima que deve se manifestar e ainda é interrogada agressivamente pelo defensor, para as demais testemunhas e para o próprio defensor, promotor e juiz.” [HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 192].

Para prevenir os efeitos de uma voluntária ou não alteração das condições de produção de sentido do conjunto dos atos processuais oralizados e registrados em meio digital, penso que existem apenas dois caminhos: a) ou a gravação/transmissão contempla todos os participantes do ato; b) ou se aplica ao processo penal a regra definida no §6º, do artigo 367 do Novo Código de Processo Civil e se assegura às partes o direito de gravar a audiência com independência de autorização judicial.

Ao consultar a doutrina do processo civil é possível observar a mais absoluta ausência de controvérsia, relativamente à gravação da audiência pelas partes. Ela é uma faculdade das partes. Os juristas da área, praticamente, limitam-se a reproduzir o texto do mencionado parágrafo do art. 367 do CPC: “§ 6o A gravação a que se refere o § 5o também pode ser realizada diretamente por qualquer das partes, independentemente de autorização judicial.” [4].

A adoção desse procedimento, isto é, permitir a gravação do ato pelas partes, além de gozar de respaldo legal teria a virtude de viabilizar o controle das ações de todos os personagens do processo de modo a verificar o respeito aos requisitos de legitimação da jurisdição penal, entre eles os preciosos princípios da presunção de inocência e imparcialidade do julgador.

Ps. Acrescentei a ideia de “pena de baquillo”, agora sob o formato de uma “pena de exposição ao banco dos réus virtual”. Enquanto escrevia o texto a pena de banquillo passou por minha cabeça, mas depois fugiu. Está aí, devidamente recuperada.


[1] Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 235, citado por PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005

[2] Garapon, Antoine. Juez y Democracia, Espanha: Flor del Viento, 1997, pp. 90-110, citado por PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005

[3] Bourdieu, Pierre. Sobre a Televisão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 81, citado por PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

[4] por todos: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 388

Artigo publicado no Justificando.