Em 2017 Geraldo Prado participou de um encontro promovido pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, a respeito da incriminação dos movimentos sociais. O debate teve como norte o caso de Rafael Braga, qu foi detido, inicialmente em 2013, por portar uma garrafa de desinfetante e outra de água sanitária durante as grandes manifestações populares que ocorreram no Rio de Janeiro, materiais que foram considerados insumos para produzir explosivos.

A seguir a participação do profssor Geraldo Prado na íntegra, que foi – ao lado de uma série de outros ensaios e análises – incluída no livro “Seletividade do Sistema Penal: O caso Rafael Braga”, de 2018.


Minha fala vai ser uma tentativa de aproximação jurídica do que singulariza Rafael Braga e também do que nos mostra como Rafael Braga é um dentre dezenas de milhares de “Rafael Braga”. Homens e mulheres, meninos e idosos, negros e brancos no Brasil. Muito mais negros, muito mais meninos, muito mais da periferia.

Inicialmente, gostaria de lembrar de Francis Fukuyama. No final dos anos 1980, declarou o fim da história, absolutamente convencido de que a queda do muro de Berlim dissolvia todos os grandes contrastes ideológicos, dissolvia o sentido de classe, e que, a final de contas, o destino histórico da humanidade se realizaria na figura do mercado. Como todo bom cientista social, ele mostrou um grande descompromisso com a realidade. Os juristas são um tanto assim. Os juristas não têm muito compromisso com a realidade. A realidade para o jurista é um detalhe, porque esse sistema de moer corpos e triturar seres humanos é milenar e só produz, naturalmente, corpos moídos e seres humanos triturados. Os juristas são vendedores de ilusões, porque eles lidam com a maquinaria de produzir sofrimento e a vendem como um instrumento de realização da felicidade.
Os juristas têm seus mitos, seus dogmas e suas bíblias, e a própria Constituição, quando interessa, é sagrada. Há uma sacralização da Constituição. Mas como qualquer produto histórico, ela também reflete determinado estado de forças que pode ser, sim, um estado de forças de imposição de opressão injusta.

Essa é grande questão, porque Rafael Braga, um jovem negro, que passou a maior parte de sua vida na periferia do Rio de Janeiro, numa região de favelas onde moram precariamente mais 150 mil pessoas, é capturado e é colocado, literalmente, no centro de um acontecimento histórico que ele próprio não apreende, já que não era o seu papel ali. Ele é dessujeitado, elimina-se o caráter de sujeito dele. Ele é desumanizado, elimina-se o caráter de ser humano dele, para que ele possa servir, então, a determinados propósitos. Compreender isso significa compreender um pouco de 2013, compreender o antes de 2013 e compreender até o que está acontecendo hoje, acontecerá na semana que vem, aconteceu ontem.

Vou ler aqui, é um pequeno trecho da abertura da minha palestra no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM, 2014):

Pretende-se identificar o conjunto de condutas dos agentes do Estado em reação aos protestos e manifestações de junho de 2013, que remete às ações de repressão política nos anos 1960 e 1970, tomando por base a oposição dicotômica “amigo-inimigo” e as características dos movimentos sociais daquelas décadas no Brasil, que eram muito diferentes dos novos movimentos sociais dos anos 1990, 2000 e 2013. O argumento central consiste na constatação de que os denominados “novos movimentos sociais” distinguem-se daqueles reprimidos pelos governos autoritários da ditadura civil-militar brasileira, porque correspondem a uma nova dinâmica social, não necessariamente orientada à disputa do poder político. Ainda assim, a reação estatal opera na mencionada frequência “amigo-inimigo” e oscila entre o esforço artificial de adequação do comportamento dos manifestantes a tipos de infração penal.1

As autoridades reagem aos movimentos sociais por meio da criminalização, que consiste em identificar a conduta de cada pessoa nos protestos como algo que corresponda a um crime, mesmo que os crimes, da forma em que eles estão previstos no Código Penal, não tenham correspondência com aquele comportamento concreto. Mesmo que haja uma enorme distância entre a conduta e o crime, acontece a criminalização como no caso do Rafael Braga, na primeira condenação. Não é possível, usando técnicas do Direito, estabelecer que Rafael Braga é autor daquele crime que o levou a ser condenado inicialmente. Uma condenação que hoje é definitiva.

Essa técnica da incriminação só não funciona se não tiver quem incrimine e quem puna. Porque você não tem incriminação se você não tiver Polícia Militar, Ministério Público e Poder Judiciário. Se o Ministério Público se recusar a acusar aquela pessoa como, por exemplo, recusou a acusar o Joesley Batista, não vai acontecer processo criminal. Se o juiz se recusar a aceitar aquela acusação, se disser “Olha, eu não faltei às aulas de Direito Penal quando eu tinha 18 anos, portanto eu sei que esta acusação é um delírio, ela não corresponde àquilo que a lei penal prevê”, você não vai ter sentença condenatória. Mas se há um processo de criminalização é porque é viável punir apesar da lei. É viável punir apesar do Direito.

Em 2014, eu tinha absoluta convicção de que aquela condenação do Rafael seria revista. Não tinha como ser mantida… mas, contra todas as evidências, pareceu ser bem-sucedida. O sujeito foi condenado e foi condenado novamente. Esse é o quadro. E como é que ele se explica? Ele se explica numa longuíssima tradição que não é só da Justiça Criminal Brasileira, mas é da Justiça Criminal em geral. Reitero: a máquina de moer corpos e matar pessoas mói corpos e mata pessoas. Não faz nada diferente disso. Uma longa tradição de repressão política via sistema criminal.

Os dois juízes que condenaram Rafael são bons juízes – mas quando a estrutura funciona, os princípios dos sujeitos, às vezes, cedem diante de uma missão que eles entendem ter que cumprir. É o messianismo das Justiças Criminais no mundo, que no hemisfério Sul é potencializado, que na América Latina é multiplicado, na América do Sul e no Brasil é tomado quase como a grande missão dos juízes criminais: “Nós somos os responsáveis pela ordem”. Por qual ordem? Daquela sociedade homogênea. Daquela sociedade una. Daquela sociedade branca. Daquela sociedade de classe média.

O sistema de Justiça Criminal cumpre o papel de ordenador. Se nos anos 1970, muito claramente, os movimentos e protestos reivindicavam democracia, fim da censura, a volta dos exilados, o fim da tortura política, o fim da prisão política, o que aconteceu em 2013 é que muitas demandas, que não eram demandas para substituir o governo – o governo estadual, o governo federal –, que não eram demandas políticas, no sentido político-partidário de disputa do poder, mas eram políticas no sentido de afirmação dos valores dos direitos de grandes segmentos da sociedade brasileira, de afirmação do direito de ser reconhecido, de existente, aquilo desarticulou as reações de praxe.

Nesse universo diferente, não foi possível criminalizar os manifestantes de forma indiscriminada. Foi necessário filtrar e, na filtragem, quem ficou? O suspeito de sempre. O Rafael Braga. O perfil absolutamente perfeito de alguém cuja criminalização não seria objeto disso aqui [o debate e a exposição], ninguém ligaria para Rafael Braga. Mas ao mesmo tempo, enviaria uma mensagem para muitos segmentos: “Vejam o que está acontecendo com ele. Pode acontecer com vocês”. Tecnicamente, Rafael Braga foi condenado por posse de substâncias explosivas em produtos que não explodem. “Mas não explode?” “De acordo com a perícia, não.” “Mas e o que os juízes disseram?” “Bem, como é que o Rafael Braga poderia saber que não ia explodir?”

Se eu atirar em cadáver pensando que há uma pessoa ali que está viva, acerto o cadáver, depois se descobre que é um cadáver. Como eu não sabia que era um cadáver, vou ser punido por homicídio? Esse é o exemplo que a gente dá para o que aconteceu com ele. Essa sentença foi confirmada pelo Tribunal. Ele está definitivamente condenado por isso. Quando a gente trabalha com Análise de Discurso e lê a sentença de condenação do Rafael Braga, o que se tem não é a condenação do Rafael Braga, mas a condenação de um determinado sujeito de protestos. Aquele sujeito de protesto não pode estar ali, outros tantos como ele não podem estar ali.

Ele vai, começa a cumprir a pena, é colocado em liberdade e aí, o singular se transforma no comum. Alguém diz na favela: “Ah, um rapaz vendendo droga!”. Rafael é encontrado com um cigarro de maconha. Com a maconha que foi encontrada com o Rafael não dá para fazer um cigarro. E com uma pequena quantidade de cocaína. Mas, segundo a polícia, “Mas e o tal que disse que ele estava vendendo droga?” Não tomou forma humana no processo. “Quem depôs?” Dois policiais militares. “Que policiais são esses?”

Disseram que no Rio de Janeiro, nessa semana, mais de sete dezenas de policiais foram presos, muitas vezes armando flagrantes como a situação que parece ser a de Rafael Braga. A sentença de condenação de Rafael Braga, com base no depoimento de dois policiais – que não chamaram ninguém mais para testemunhar – é uma sentença de recondenação por sua participação nos movimentos. Basta ler a sentença. E é a sentença que se reproduz cotidianamente contra a juventude negra da periferia das grandes cidades brasileiras, nesta que é a grande cruzada de determinados setores das nossas elites: a criminalização das drogas.

Se a gente quer começar aqui uma coisa muito forte tem que ser descriminalizar a posse e a venda de drogas. Porque, senão, vamos continuar permitindo que nossos jovens sejam mortos, sejam encarcerados por um sistema de Justiça que funciona exatamente assim.

1PRADO, Geraldo et al. Aspectos contemporâneos da criminalização dos movimentos sociais no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 23, n. 112, p. 245-260., jan./fev. 2015.
Com informações do Jornal do Brasil e do Instituto Tomie Ohtake.