Entre 1985 e 1988 fui Promotor de Justiça no Rio de Janeiro. Era o início do fim da ditadura e o MP lutava desde meados dos anos 70 para se afirmar como instituição independente, o carro-chefe sendo a atuação criminal e nas ações civis públicas.

No fim dos 70, promotores e procuradores de justiça do Rio acamparam nos jardins do Palácio Guanabara para cobrar autonomia e melhores salários ao gov. Chagas Freitas, que por ironia era procurador de justiça aposentado.

Na Constituinte o lobby do MP foi muito importante e legítimo e no Rio de Janeiro foi liderado por Biscaia (Procurador-geral) e Navega (presidente da Associação do MP).

Um dos aspectos centrais do lobby, mais enfatizado, consistia na necessidade de traçar uma fronteira clara, proibindo a ingerência de juízes em funções do MP.

Explico: até a Constituição de 88 os juízes tinham poderes para acusar e julgar, o que era considerado um absurdo no mundo civilizado. Entre nós, todavia, era assim desde a Colônia e do Império.

Com a nova Constituição (art. 129) colocou-se um fim nessa excrescência, mas o fato é que a magistratura criminal daquele período era tendencialmente autoritária, havia convivido bem com as duas ditaduras do século e muitos juízes criminais “forçavam a barra” para seguir como dublês de acusador e julgador.

Por isso a nova geração de MPs dos anos 80 reagia duramente contra toda tentativa de juízes de interferirem nas investigações e inquéritos.

Cito uma experiência pessoal que creio que é emblemática.

Em uma comarca onde trabalhava como promotor, um juiz decretou a prisão de alguém de ofício, em um inquérito, e me enviou os autos para eu acusar (denunciar). Devolvi o inquérito sem denúncia, deixando claro que era para o juiz relaxar a prisão da pessoa se não quisesse ele mesmo “acusar”. A prisão foi relaxada e ele nunca mais tentou interferir nas minhas funções.

Era como reagíamos à época, não aceitando de maneira alguma que juízes interviessem nas funções do acusador. E convivíamos muito bem, juízes, promotores, advogados e defensores.

No interior era comum juízes, promotores, defensores e advogados almoçarmos e jantarmos juntos. Conversávamos sobre a vida, direito, futuro, carreira, cenas engraçadas do dia no tribunal.

Havia, no entanto, um limite claramente traçado. Não combinávamos estratégias processuais, “dobradinhas”, decisões ou coisas do gênero. Isso seria impensável porque seria desonesto, ilegal, imoral, antiético e jogaria por terra todo o esforço orientado à construção de um sistema acusatório [em 1998, já juiz, fui autor da primeira monografia/dissertação sobre Sistema Acusatório no Brasil, texto que até hoje tem milhares de downloads anuais no site Academia Edu].

Em 88 ingressei na magistratura, que exerci por quase 25 anos. Nunca convivi com promotores ou procuradores que sugerissem uma relação fora dos autos, combinada, por qualquer que fosse a razão. Como disse, isso era impensável.

Trabalhei a maior parte do tempo em primeira instância com duas extraordinárias promotoras de justiça. O contato era diário, falávamos de tudo, exceto sobre casos concretos e o que em tese faríamos diante de hipotéticos pleitos. Isso não era sequer cogitável.

A convivência era harmoniosa, o que não as constrangia de recorrer sempre que entendiam desacertada a minha decisão. E foi assim também nos 6 anos como desembargador criminal.

Chegando ao presente é incontroverso que várias das conversas entre o então juiz Moro e o procurador Deltan, reveladas na Vaza-Jato (hackeamento como os vários ao longo da última década que mudaram relações de poder no mundo todo, a exemplo do Panamá Papers e que são objeto de estudo na Ciência Política), são vergonhosas, antiéticas e ilegais. Violam frontalmente o sistema acusatório, não são aceitas em lugar algum do mundo, são a rigor penalizáveis administrativamente e lembram o antigo modelo do “juiz de instrução”, rejeitado por antidemocrático, em que o juiz mandava no investigador, que, fingindo obedecer, manipulava o magistrado.

Talvez a distância temporal entre o momento da luta do MP por autonomia e pelo sistema acusatório como modelo não autoritário de justiça, e os anos 2000, com alguns juízes e novos procuradores encantados com a notoriedade que a mídia podia proporcionar, tenha sido a causa para o abandono da lei e a prática do vale-tudo que as conversas citadas no julgamento da suspeição revelaram. [A juventude não justifica. Em meu concurso de 1984 para o MP erámos 28 aprovados, majoritariamente muito jovens, 21 mulheres e 7 homens, e todos lutávamos por um MP independente, respeitável, aderente aos valores democráticos].

Para alguns, pelo visto, o longo tempo decorrido dos anos 80 para cá esmaeceu o valor ético, jurídico e político da escrupulosa diferenciação legal e prática entre as funções de acusar e julgar.

Convém pesar também o propósito premeditado de Moro de derrubar essas fronteiras quando, em um texto pretensamente acadêmico, de escasso valor teórico, de maneira deliberada confunde a “magistratura de investigação italiana”, equivalente aos nossos promotores e procuradores, com juízes em exercício de funções jurisdicionais e preconiza juízes Partisan que atuassem como inimigos dos acusados. Isso seria possível apenas em outra ordem constitucional, antidemocrática, francamente autoritária. Nunca naquela resultante da nossa Constituição.

A Vaza-Jato no Brasil revelou não somente este contexto de graves ilegalidades como o viés político que ao fim mudou artificialmente o cenário político nacional.

As provas produzidas pela Vaza-Jato, fruto de atividades criminosas, não podem ser usadas para investigar e punir Moro e Dallagnol. Podem e, principalmente, devem ser usadas para corrigir as decisões enviesadas que, confirmadas ou não pelas instâncias superiores, estão maculadas pela parcialidade do julgador em simulacros processuais com resultados estrategicamente definidos antes mesmo de a denúncia ser oferecida.

A aparência de legalidade que exibiam foi capaz de iludir os mais experientes julgadores, que as tomaram por “verdades” quando não passavam de construções discursivas voltadas a produzir narrativas credíveis (“com a verdade me enganas”, dizem os portugueses).

É evidente que isso deve ser examinado caso a caso, conforme as provas.

É inevitável, no entanto, que o seja. Se Moro e Dallagnol não podem ser processados pelo que fizeram, porque trata-se de provas obtidas ilicitamente, isso não significa que o comportamento de ambos não deva ser reprovado socialmente.

Nesta esfera é inadmissível que a conduta que praticaram escape ao escrupuloso escrutínio social. O repúdio a ela é condição prévia para que sejam reafirmados os valores da civilização sem significar aplauso à criminalidade da corrupção ou econômica. Essa falsa dicotomia é outro esforço para fazer o engano parecer menos reprovável do que é.

Não repudiar a conduta de ambos implica incentivar, unidirecionalmente, a ilegalidade, algo como “vale o ilegal quando praticado por agentes do Estado, não por hackers”. A tortura, em regra, é exemplo de ilegalidade típica de agentes públicos, embora não exclusiva deles.

Nos anos 80 um juiz no Brasil que se atrevesse a “sugerir” como um MP deveria se portar ao acusar seria duramente repelido. Um promotor que aceitasse este tipo de investida será muito mal visto na instituição. E um promotor que tentasse sorrateiramente combinar estratégias e ações com o juiz (o “sorrateiro” era o Telegram da época), se descoberto responderia a processo.

Fica o registro.

Geraldo Prado
Advogado