Está em curso importante debate provocado por proposta de Lenio Streck, incorporada e convertida em projeto de lei pelo senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), em virtude da qual se pretende alterar o artigo 156 do Código de Processo Penal para estabelecer o dever de o Ministério Público, ciente de elementos na investigação criminal que possam interessar à defesa do investigado, diligenciar no sentido do esclarecimento da verdade.

O projeto tem indiscutíveis méritos. Coloca em evidência algo que desde há muito defendo como essencial em um processo penal conforme o Estado de Direito: o acusador, em posição estratégica mais favorável na investigação criminal, tem o dever de “descobrir”, “revelar” ao investigado todos os elementos informativos recolhidos ao longo da investigação, mesmo os que são convergentes com as teses defensivas (Discovery),[1] sendo-lhe interditado omitir estas informações e surpreender a “parte contrária” (unfair surprise).[2]

A proposta persegue este objetivo ao estabelecer de maneira ainda mais clara o “dever de diligência do MP”, extraído da norma constitucional do devido processo legal, dever incompatível com a postura de “cegueira probatória deliberada”, postura que toma a forma, por exemplo, da ignorância deliberada acerca da quebra da cadeia de custódia de provas para evitar a impugnação do elemento probatório pela defesa.

Este dever de diligência não é prejudicado pela condição de “parte” que é ostentada constitucionalmente pelo MP e é fundamental em um processo acusatório. Em realidade, o dever de diligência decorre do mandamento constitucional que obriga o MP, como ente estatal, a atuar com impessoalidade. O comportamento processual do MP demitindo-se de investigar elementos probatórios cuja existência está indiciada na investigação, porque eventualmente favoráveis ao investigado, violaria o dever de atuar com impessoalidade.

Isso, por evidente, não importa no esgotamento das teses defensivas, tampouco converte a investigação em fonte de verdade absoluta e o MP em juiz dessa verdade, pois que o âmbito normativo de uma tal disposição está necessariamente limitado pelo conhecimento que o MP tenha obtido na investigação, fundando-se objetivamente em um dever de lealdade para com a parte contrária. Este dever de lealdade da acusação deixa de ser apenas um mandamento ético para transformar-se em “dever jurídico”.

Teses e informações favoráveis que não estão indiciadas na investigação e interpretações sobre os fatos mesmo, a partir das que constam da instrução preliminar, não estão albergadas pela disposição projetada.[3]

A rigor a proposta não deveria gerar reação. Sua configuração atende ao que nos Estados de tradição democrática consensualmente é visto como concretização da presunção de inocência e do devido processo legal.

Com efeito, a presunção de inocência em sua dupla dimensão — regra de tratamento do acusado e de disposição sobre o ônus da prova —, o caráter acusatório do processo, que requisita a atuação das partes e a sua mediação por juiz equidistante e imparcial, a igualdade de tratamento entre estas mesmas partes e a paridade de armas, a publicidade e a motivação das decisões penais e todos os consectários deste repertório de direitos e garantias, a desaguar em um processo em contraditório, são conformadores do devido processo penal consoante consagrado pela tradição do Estado de Direito a que aderimos quando a democracia foi restabelecida.

A este repertório não está alheia a investigação criminal. Com independência de se tratar de fase de instrução preliminar, dirigida a “fornecer elementos de convicção que permitam justificar o processo ou o não processo”,[4] salta aos olhos que a Constituição reformulou, conceitualmente, a investigação, “na onda de reconstrução do Estado de Direito”.[5] Esta passa a ser vista como “filtro processual” apto a conter os abusos e evitar as acusações infundadas ou temerárias, fortalecendo sua vocação de garantia na tutela da dignidade da pessoa.

Reconhece-se, pois, a investigação criminal conforme ao devido processo legal em dupla perspectiva: a) como meio hábil à formação da justa causa para a ação penal, interditando o recurso à acusação penal nos casos em que esta não supera o filtro das condições mínimas para levar alguém a juízo;[6] b) como exigência de que a própria investigação esteja adequada ao conjunto de garantias que controlam a vocação expansiva do poder de punir.[7]

O que se acentua aqui e tem sido observado, merecendo da doutrina consideração especial pela gravidade como se projeta no âmbito das investigações, é que a instrução preliminar carente destes elementos objetivos apoia-se quase sempre em aparências, em tendente pré-condenação do suspeito,[8] e não raro busca extrair das aparências os fundamentos para um “estado de necessidade investigatório” que burla os requisitos para terminar afetando a autodeterminação das pessoas visadas.

A investigação criminal transforma-se, pois, na sede das principais controvérsias processuais, na maioria das vezes com enorme desvantagem estratégica para o investigado, em virtude do caráter sigiloso dos inquéritos e da tradição injustificável de recusa de aplicação da garantia do contraditório, que está prevista na nossa Constituição como filtro de validação de qualquer ato processual, cautelar ou de tutela satisfativa (artigo 5º, inciso LV).

Um dos aspectos mais salientes da transformação pela qual passou recentemente o processo penal brasileiro está na sua consolidação como processo de partes que, à semelhança do processo criminal alemão e do inglês, por exemplo, cobra rigor na análise das condições concretas para a admissibilidade da demanda e mesmo para o deferimento das cautelares.

Não por outra razão o Código de Processo Penal foi alterado em 2008 pela Lei 11.719, para introduzir procedimento específico de controle da acusação, disciplinando a matéria dos artigos 394 a 399.

No âmbito do processo penal alemão a regra é exigir mais seguro standard de prova para a aceitação da acusação, ainda que a toda evidência este standard não se equipare ao que se cobra para a emissão de sentença condenatória. Por todos convém ter atenção às seguintes considerações de Alaor Leite:

No processo alemão, só há “justa causa” quando houver uma alta probabilidade de condenação, uma probabilidade em geral entendida como maior do que a de não condenar (conforme ROXIN/SCHÜNEMANN, Strafverfahrens, 27ª ed., 2012, § 42mm. 8). O termo justa causa, porém, é desconhecido; utiliza-se em seu lugar o conceito de hinreichender Tatverdacht, suspeita suficiente. O acusador só pode propor a denúncia se, a seu ver, estiver presente essa probabilidade (§170 I StPO), e o juiz só pode receber a denúncia depois de afirmar a presença desse pressuposto (§ 203 StPO).[9]

Ao tratar da teoria processual da infração criminal que advoga, Paulo de Sousa Mendes busca inspiração no modelo do common law e refere à controvérsia sobre o nível de exigência em vigor no mencionado sistema, trazendo à luz a orientação dominante no processo penal inglês. Com efeito, a indicação para o Ministério Público inglês é de que somente se deve acusar se, e apenas se, houver provas suficientes que permitam antever a condenação do acusado. Literalmente:

D’Almeida, porém, não concorda com Duff. Designadamente, d’Almeida não aceita que as ofensas se relacionem diacrónica e sequencialmente com as defesas, mas entende que ambas se situam num único e o mesmo patamar sincrónico. Ou seja, d’Almeida propõe que se identifique um sentido substantivo das defesas distinto do seu entendimento meramente processual, enquanto modalidade de resposta às acusações criminais, algo que Duff não aceita fazer. Segundo d’Almeida, só assim se tornam compreensíveis, por exemplo, as disposições do Código dos Serviços de Promoção Criminal da Coroa (Code for Crown Prosecutors), na versão em vigor de 2013, que mandam acusar se e só se houver provas suficientes que permitam antever a condenação do arguido em julgamento.”[10]

A parte II do artigo será publicada nesta quarta-feira (3/3).


[1] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controle epistêmicos: A quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 48-57.

[2] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controle epistêmicos A quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 53-54.

[3] Em estudos recentes tenho debatido o próprio conceito de “processo”, com consequência na delimitação do que pode ser considerado seu momento inicial, projetando-se no estatuto jurídico das partes. Também tenho dedicado atenção à disputa narrativa entre acusação e defesa sobre a mesma base empírica, em torno da noção de “fato”, e os problemas atinentes à controvérsia.

[4] LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 60.

[5] CHOUKR, Fauzi Hassan. As garantias constitucionais na investigação criminal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 5.

[6] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para a ação penal: doutrina e jurisprudência. São Paulo: RT, 2001.

[7] Exemplo disso as decisões do STF “trancando inquéritos policiais” abusivamente instaurados. Habeas Corpus 96.055. 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Relator: ministro Dias Toffoli. Julgamento em 6 de abril de 2010; Questão de Ordem em Ação Penal 422-4. Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal. Relatora: ministra Cármen Lúcia. Julgamento em 27 de março de 2008; Habeas Corpus 89.902-1. 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Relator: ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 18 de setembro de 2007; Questão de. Ordem em Petição 3.593-3. Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal. Relator: ministro Celso de Mello. Julgamento em 2 de fevereiro de 2007; Embargos de Declaração no Habeas Corpus 92.484. 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Relator: ministro Joaquim Barbosa. Julgamento 5 de junho de 2012.

[8] PALMA, Maria Fernanda. O problema penal do processo penal. In: Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004. p. 46.

[9] Nota de rodapé nº 28 do tradutor Alaor Leite no texto: SCHÜNEMAN, Bernd. Audiência de instrução e julgamento: modelo inquisitorial ou adversarial? – Sobre a estrutura fundamental do processo penal no 3.º milênio. In: GRECO, Luís; MARTINS, Antonio (orgs.). Direito Penal como crítica da pena: Estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70.º aniversário em 2 de setembro de 2012. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 641.

[10] MENDES, Paulo de Sousa. Causalidade Complexa e Prova Penal. Coimbra: Almedina, 2018. p. 93.

Publicado no Consultor Jurídico