Por Geraldo Prado e Danyelle Galvão

Critérios de competência para julgamento de ações penais e recursos estão definidos em lei

Desde o início da Operação Lava Jato muito se tem discutido sobre o alargamento artificial da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o julgamento de fatos de outros locais do país, como uma espécie de juízo universal da Lava Jato.

Na semana passada, ao julgar monocraticamente um habeas corpus, seguindo a orientação hoje pacificada do STF, o ministro Edson Fachin de uma só vez anulou quatro processos criminais movidos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o fez por reconhecer a incompetência de Curitiba para estes casos.

Em um dos processos, no entanto, a 2ª Turma do STF decidiu que a decisão de Fachin não produziria efeitos porque já havia sido iniciado o julgamento de habeas corpus que questionava a imparcialidade do juiz Sergio Moro (“tríplex do Guarujá”). A decisão da 2ª Turma de seguir com o julgamento do habeas corpus da suspeição segue precedente questão de ordem e não se sujeita a recurso para o pleno do STF (questão de ordem nos embargos da AP nº 618, 2ª Turma). Vale lembrar que, por seus efeitos, a decisão da suspeição tem precedência sobre a de incompetência.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) recorreu da decisão de Fachin na última sexta-feira (12) e, então, o ministro decidiu que este recurso deve ser decidido pelo plenário do STF e não pela 2ª Turma, órgão competente pelas regras do próprio Supremo. Em síntese: para discutir a competência para julgamento de Lula, o relator muda a competência para julgar o recurso contra a decisão que anulou os processos de Lula. Dito isso, pergunta-se: é possível?

O regimento interno do STF autoriza que o relator ou a turma submeta ao plenário da corte o julgamento das causas e recursos, o que se chama “afetação”, desde que verificada uma das seguintes hipóteses: 1 – quando houver relevante arguição de inconstitucionalidade ainda não decidida; 2 – quando houver divergência de entendimentos entre as turmas ou em relação ao plenário; ou 3 – quando convier o pronunciamento do plenário em razão da relevância da questão jurídica ou para prevenir divergências de entendimento.

As hipóteses de “afetação” são restritas porque é exceção ao princípio do juiz natural e à regra da igualdade de todos perante a lei, uma vez que, no caso concreto, a competência para o julgamento de habeas corpus comum é de uma das turmas do STF. E não só: a “afetação” tem como requisito essencial a existência —ou pelo menos a iminência— de entendimentos divergentes dentro da corte, justificando-se no propósito de eliminar a divergência.

Trata-se de questão de direito e não de fato. Enquanto a decisão de mérito de um habeas corpus, proferida por apenas um ministro, pressupõe que não haja divergência de entendimento no STF, como reconheceu Fachin ao extinguir os quatro processos, a “afetação” está apoiada no extremo oposto, isto é, na existência de entendimentos divergentes e contraditórios no STF a reclamar a pacificação.

Na história recente do STF, alguns casos foram afetados e julgados pelo plenário da corte: proibição de liberdade provisória a presos por tráfico de drogas; progressão de regime de condenações por crime hediondo; ordem das alegações finais em casos com acusado colaborador premiado; e execução provisória da pena antes do trânsito em julgado, que mudou a jurisprudência sobre o tema em 2016.

Em todos esses casos, havia ou uma arguição de inconstitucionalidade de lei federal ou divergência de entendimento dentro do tribunal. Situações completamente diversas da relativa ao recurso da PGR no caso do ex-presidente Lula.

Primeiro porque o habeas corpus que discute a competência da 13ª Vara de Curitiba não trata de arguição de inconstitucionalidade de lei, mas de descumprimento dos requisitos elementares de competência previstos no Código de Processo Penal. Depois, como reconhecido por Fachin, a matéria não encontra divergência de entendimento entre os órgãos da corte. Tanto que a própria decisão que anulou os casos de Lula baseou-se em regra do regimento interno que autoriza o julgamento monocrático “quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal”.

Admitiu expressamente que não há divergência –mesmo que em tese— ou arguição de inconstitucionalidade de lei que justifiquem a remessa do caso ao plenário. Caso contrário, o habeas corpus não poderia ter sido julgado unicamente pelo ministro relator, como foi. O pleno do STF não é órgão revisor da questão de fato.

Além disso, a relevância das partes envolvidas no caso não é uma das hipóteses autorizadoras de afetação ao plenário. Como já afirmou o ministro Marco Aurélio Melo, “o processo não tem capa, tem conteúdo”. Todas as pessoas devem ser tratadas da mesma maneira perante a lei, lei que sobre competência territorial não comporta solução diferenciada porque o acusado é Lula e não outro.

Os critérios de competência para julgamento de processos penais e recursos estão definidos em lei, que deve ser observada sob pena de, tal como ocorreu, anular-se tudo. Chama-se devido processo legal.

Publicado na Folha de S.Paulo.