Fernando Pessoa faleceu em 30 de novembro de 1935. Gênio da literatura portuguesa, foi dos primeiros poetas que me encantaram na juventude, dividindo minhas preferências com Bandeira, Drummond, Vinicius e Neruda. Mais velho, descobri a beleza lírica de Florbela Espanca. Nos 70 liam-se poesias com mais frequência, parece. Impossível não lembrar de Alberto Caeiro e do poema “Há metafísica bastante em não pensar em nada”.

Nas pegadas do amigo professor de Málaga, José Calvo González, afirmo não ser prudente caminhar pelas sendas do Direito ignorando as pistas da literatura.

O médico Dr. Quaresma talvez seja inspirado no colega de profissão, Sir Arthur Conan Doyle e, quem sabe, tenha inspirado o diagnosticista Gregory House. Na epistemologia jurídica e na prova, um misto de ficção e realidade está mais próximo do conhecimento do que supõe a vã filosofia. Que o digam Umberto Eco e Thomas A. Sebeok, organizadores da excelente coletânea de artigos Dupin, Holmes e Pierce: O Signo de Três[2], com contribuições de Carlo Ginzburg e Jaakko e Merril B. Hintikka, entre outros.

Pessoa tinha uma experiência de vida do Reino Unido e, presume Ana Maria Freitas, na apresentação das Novelas Policiárias, provavelmente havia tido contato com as obras de Edgar Poe e Wilkie Collins.[3]

Penso que é útil conhecer a técnica do médico decifrador Dr. Quaresma, pelo relato de um fiel observador:

“O raciocínio, ou, mais latamente, a inteligência, trabalha sobre sensações – dados fornecidos pelos sentidos, nossos ou alheios – o que juridicamente se chama testemunho.”

[…]

“Desde que o caso é mais complexo ou obscuro, temos que lutar com as dificuldades da insegurança das testemunhas (e grande número de testemunhas são duvidosas, por falta de observação, por pressuposições naturais ou sentimentos, e, ainda, por má fé deliberada); da escassez de dados, que torna difícil que entre si se compare; e da falta de relação entre eles, que torna difícil que através deles se descubram outros, ainda ocultos.”

[…]

“O carácter interessante do crime tende a produzir testemunhos de natureza involuntariamente conjetural, e os elementos emotivos, que sugere, a evocar testemunhos de carácter preconceitual.”

[…]

“Está claro que todas as operações do raciocínio abstrato são, por sua mesma natureza, conjeturais, embora o sejam variamente, isto é, por diversas razões. Não devemos, porém, esquecer que não há na mente compartimentos estanques, que na prática, e sem querer, empregamos confundidamente processos vários, e que, embora o raciocínio abstrato seja por natureza conjetural e o raciocínio concreto por natureza o não seja, nós, na realidade da nossa vida mental, nem empregamos puramente o raciocínio concreto, nem empregamos puramente o raciocínio abstrato.” [4]

Não é prudente caminhar pelas sendas do Direito ignorando as pistas da literatura.

A sabedoria de Pessoa, rectius Dr. Quaresma, compreendendo o caráter complexo da atividade probatória, é por si só uma resposta contundente aos que defendem a existência e mesmo apenas a busca de uma verdade real.

Vivemos tempos de hostilidade ao saber e uma das formas que toma essa atitude de violência intelectual é a crença na simplificação da realidade. Em rima pobre, não há nada mais distante da realidade do que a rudimentar redução do mundo ao simplório.

O rudimentar, no campo da prova penal, está na base da certeza absoluta, da convicção inabalável, fundamenta o Eu acuso da era digital, tão largamente difundido. É sempre e sempre o esteio da injustiça anunciada, que ganha vida na forma da morte trágica, como no caso do Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo.

Por isso é necessário ter muito cuidado com a prova e mais ainda com nossas próprias convicções. Essa cautela inspirou o livro Prova Penal e Sistema de Controles Epistêmicos, publicado pela Editora Marcial Pons, que não será reeditado porque, no período de sabática que se inicia com o ponto final do presente ensaio, pretendo reescrevê-lo, ampliando o seu escopo.

Em seguida dou um spoiler do que será a apresentação da nova obra, que persegue o objetivo de reduzir a margem de erro no âmbito da justiça penal.

Com efeito, vindo à luz o livro Prova Penal e Sistema de Controles Epistêmicos, imediatamente foram colocadas algumas questões que, dada sua natureza e relevância, também pesaram na decisão de se oferecer ao leitor um novo trabalho.

Por motivos que em parte serão tratados nos capítulos iniciais da futura obra, denominada Cadeia de Custódia da Prova no Processo Penal, a perspectiva epistemológica foi recebida com suspeita por determinados setores da doutrina processual penal que há tempos posicionavam-se contrariamente a algumas das teses sustentadas por Michele Taruffo,[5] sendo essa a razão primordial para a explicitação das premissas teóricas indispensáveis ao entendimento do que defino como função de garantia que a dimensão epistêmica deve cumprir no processo penal contemporâneo.

Com efeito, se o relato do direito probatório parte de conceitos relativamente consensuais – como, por exemplo, da «conexão significativa no que diz respeito ao âmbito da prova e da avaliação dos fatos» entre a função do juiz e a exercida pelo cientista, proporcionada pela incorporação de «metodologias científicas e (os) modelos de raciocínio científico (que) podem contribuir para a análise do problema da prova jurídica», conforme Michele Taruffo, na crítica de Salah Khaled Jr. – o ponto de chegada de uma verdade possível no cotidiano da justiça penal frequentemente salta obstáculos que têm a ver com a desigual incidência do poder punitivo na sociedade e sua não rara injustiça material.

Não é outra a preocupação – e o motivo, suponho – de um trabalho do fôlego de Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal ter iniciado pelo enfoque epistemológico voltado à razão no direito penal.[6]

Na linha preconizada por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses compreende-se que: «Toda experiência produz e reproduz conhecimento e, ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias. Epistemologia é toda noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional e inteligível. Não há, pois, conhecimento sem práticas e atores sociais.» (Grifo nosso).[7]

As práticas penais, entendidas como métodos de arbitramento ou definição da responsabilidade penal de alguém, caracterizam-se por ser experiências sociais produtoras e reprodutoras de conhecimento. Há uma dimensão epistêmica incontornável, inerente à tarefa de investigar a existência de uma infração penal e a eventual responsabilidade penal do imputado.

Como em outro espaço tive a ocasião de sustentar, a dimensão epistêmica da prova deve ser um ganho em termos de garantia da liberdade.[8]

Ao revés, levada ao extremo essa dimensão, a obsessão pela verdade tem inspirado juristas do hemisfério norte a defender a sujeição de valores e princípios não epistêmicos aos resultados das atividades epistêmicas. Chega-se assim, pragmaticamente, ao mesmo lugar que, a bordo do esquema político da verdade real, o autoritarismo penal levou as práticas penais na América Latina, ainda que nem sempre conscientemente percebido dessa maneira pelos próprios juristas. [9]

Com efeito, à proibição do emprego de provas ilícitas no processo não é o único cadáver de um direito fundamental a ficar pelo caminho neste verdadeiro desafio hermenêutico que propõe em termos autoritários a solução para a equação segurança versus liberdade. Também a noção de que a função do juiz deve ser a de tutor jurídico-constitucional da presunção de inocência, e não a de “buscador” da verdade – o Google da verdade real -, resulta ferida de morte. São abertas as portas do processo às provas obtidas por meios ilícitos e o juiz consorcia-se com a acusação, operando como ator do campo da segurança pública, guiado pela primazia absoluta de uma busca impossível.

Em operação de redução de complexidade, A Cadeia de Custódia da Prova no Processo Penal está sendo concebido em bases teórico-práticas que, no limitado espaço da cadeia de custódia das provas penais, têm por objetivo reconhecer que no estado de direito a legitimação da punição reclama a rigorosa adoção de um sistema de controles epistêmicos que é essencial à própria noção de devido processo legal.

P.S. Com Os fatos são coisas duvidosas. Contra argumentos não há fatos: Os dilemas da prova penal despeço-me dos leitores que me prestigiaram na Coluna Justiça & Liberdade, que para minha alegria compartilhei com nosso querido líder Salah Khaled Jr. e @s amig@s Cami Poli, Flávio Antônio da Cruz e Antonio Pedro Melchior. Planejo retornar em agosto de 2018, mas deixo o público na excelente companhia de Ricardo Jacobsen Gloeckner, que passa a escrever na coluna. Muito bem-vindo, Ricardo! Agradeço muito ao Brenno Tardelli, nosso sexto Beatle, pela acolhida e pelas fantásticas ilustrações. Dedico este artigo à Giselle. Ela sabe porquê. Feliz 2018 a tod@s!


[1] PESSOA, Fernando. Novelas Policiárias: uma antologia. Ana Maria Freitas e Fernando Cabral Martins (ed.). Porto: Assírio & Alvim, 2016. p. 36.

[2] Tradução Silvana Garcia. São Paulo: Perspectiva, 2014.

[3] Nota Introdutória de Novelas Policiárias: uma antologia. Obra citada. p. 07.

[4] PESSOA, Fernando. Novelas Policiárias: uma antologia. Ana Maria Freitas e Fernando Cabral Martins (ed.). Porto: Assírio & Alvim, 2016. p. 38-40 e 43.

[5] No Brasil, entre as críticas mais pertinentes cabe destacar a de Salah Khaled Jr., em livro referência sobre a interface verdade e prova penal. KHALED JR., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. 2ª Ed. Belo Horizonte: Letramento, 2016.

[6] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: Teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2009. P. 33-205.

[7] SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 15.

[8] Prefácio ao livro “A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial”, p. 19. KHALED JR., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. 2ª Ed. Belo Horizonte: Letramento, 2016.

[9] No Brasil, por todos, Frederico Marques. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Vol. 2. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1961. p. 279.

Artigo publicado no Justificando.