“Quem deveria controlar a atividade do MP não é o Judiciário, mas a sociedade”
Se o Brasil tivesse um Estado Democrático de Direito consolidado, com instituições fortes e independentes e respeito ao direito de defesa dos investigados, seria o caso de abrir mão da colaboração premiada, devido aos riscos que ela traz ao sistema penal. Mas como grupos de políticos e empresários dominaram o país, a delação virou um instrumento imprescindível para se salvar a combalida democracia nacional, afirma o desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Geraldo Prado.
“A democracia brasileira está em uma encruzilhada. Não podemos ter posições que olhem apenas para um lado das coisas. Eu seria inconsequente e irresponsável se fizesse isso. (…) Hoje, a delação premiada é um instrumento de identificação do que é a nossa realidade política e econômica, do estágio real da nossa fragilíssima democracia.”
Isso não quer dizer que o mecanismo não deva ser aperfeiçoado. Para o professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é preciso que a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) deixe mais claro qual é o alcance das colaborações e que autoridade ficam vinculadas a ela.
Mas Prado ressalta: uma vez homologada delação, o que foi acordado entre o Ministério Público e o colaborador deve ser respeitado. Nesse sentido, o agora consultor jurídico elogia a decisão do Supremo Tribunal Federal de que o Plenário só pode rever ou anular cláusulas de termo de colaboração premiada validado pelo relator se acontecer algo que justifique o ajuizamento de ação rescisória, nos termos do Código de Processo Civil.
“O controle que o Judiciário deve fazer é da legalidade do acordo, não de seu mérito. Caso contrário, estaríamos voltando à estrutura pré-Constituição de 1988, quando o juiz era acusador”, opina Prado.
Segundo ele, “quem deveria controlar a atividade do Ministério Público não é o Judiciário, mas a sociedade”. Dessa maneira, atos do órgão – como o perdão judicial concedido pela Procuradoria-Geral da República aos sócios da JBS Joesley e Wesley Batista – estariam sujeitos ao controle popular.
Em entrevista à ConJur, concedida em seu escritório, no Centro do Rio, Geraldo Prado também disse que, ao adotar o papel de restaurador da moralidade pública, o juiz federal Sergio Moro perde a imparcialidade e a capacidade de assegurar o respeito aos direitos dos investigados.
O jurista ainda discutiu como a Lei das Organizações Criminosas mudou as investigações de delitos de colarinho branco no Brasil e avaliou que a operação “lava jato” é só mais um capítulo na longa história de espetacularizações judiciais.
Leia a entrevista:
ConJur — Como a regulamentação da delação premiada no Brasil, com a Lei 12.850/2013, mudou as investigações de organizações criminosas?Geraldo Prado — Em 2003, eu publiquei a minha tese de doutorado, Transação Penal. Naquela oportunidade, eu alertei para o grave risco que estaríamos correndo nos anos subsequentes de extensão dos negócios jurídicos processuais como técnicas de responsabilização criminal. O que significa isso? Em primeiro lugar, uma transferência das atividades de investigação, que, há bastante tempo na tradição ocidental, estavam a cargo do Estado — da polícia e do Ministério Público — para as pessoas investigadas, que assumem o dever de fornecer elementos esclarecedores a respeito de graves infrações penais. Há uma explicação para essa transferência, que repousa no fato de que muitos crimes atualmente são bastante complexos. São crimes de difícil investigação, que envolvem partes que representam setores menores da sociedade e que estão mais entrosadas, estão mais organizadas. Eu não gosto de usar a expressão “crime organizado”. Mas sem dúvida alguma o tipo de criminalidade que reclama o emprego da delação premiada é um tipo de criminalidade que quase sempre afeta um setor pequeno da sociedade, muito harmônico no cometimento de crimes. E crimes que não são como o homicídio, como o tráfico de drogas, como o estupro, que são crimes graves, mas de dificuldade probatória média. São crimes que a sua própria caracterização demanda muito tempo, e envolvem a colaboração de muita gente.
Mas é preciso deixar claro: a delação premiada não surge apenas em Estados autoritários. Eu ouço muitos discursos de que delação premiada e outras técnicas atuais são típicas de estados autoritários. Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial, Itália pós-democratização, Espanha pós-democratização, EUA desde sempre e Inglaterra podem ser acusados de qualquer coisa, menos de serem Estados autoritários. E é deles que nós estamos recebendo essa influência, por força daquilo que eu chamo de “globalização jurídica”. Isso vem com o aperfeiçoamento das técnicas de cooperação internacional. Eu entendo perfeitamente isso, mas a lógica que esses Estados estão implementando é a de transferir o poder de investigação das infrações penais para alguns dos investigados. A delação premiada é, talvez, o exemplo mais claro disso. Ao identificar a delação premiada como meio de obtenção de prova, o artigo 4º da lei 12.850/2013 está dizendo que um dos investigados vai ser um instrumento de esclarecimento de infrações penais complexas. O Estado reconhece uma dificuldade estrutural: como investigar infrações penais se elas têm uma realidade muito limitada em termos de pessoas que estão já tradicionalmente protegidas pelo sistema? Elas gozam de proteção econômica, política e jurídica pelo sistema. Porém, há uma enorme diferença entre apelar a esses instrumentos em uma sociedade com uma tradição democrática, de respeito ao devido processo legal, às garantias fundamentais, em que o juiz cumpre uma função de tutela dos direitos fundamentais, de garantir as regras do jogo, de ser responsável para que a acusação não se exceda, para que o investigado – mesmo o colaborador – não seja tolhido dos seus direitos fundamentais, em que as suas instituições tenham uma cultura democrática, e em uma sociedade sem essas proteções.
A Constituição de 1988, no seu conjunto de direitos e garantias do processo, no seu reposicionamento do juiz, do Ministério Público, da policia e da defesa, ainda é um projeto muito distante de estar concluído. No período imediatamente posterior a entrada em vigor da Constituição, o juiz continuava imbuído do mesmo espírito de investigação criminal, da mesma lógica da associação que tinha com a polícia e com o Ministério Público antes da Constituição de 1988. Não havia uma mentalidade consolidada no Judiciário, e muito menos na sociedade brasileira, de que o juiz deveria limitar os eventuais abusos da polícia e do Ministério Público. E o Ministério Publico ganhou importância com a Carta Magna, e deixou de ser um mero auxiliar do juiz investigador. Mas chegamos a 2003 ainda com uma jurisprudência muito inspirada nas práticas autoritárias anteriores a 88. A Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), que só faria sentido antes da Constituição de 88, estava sendo aplicada visivelmente contrariando as regras da Carta Magna. A sociedade queria, e quer, e quase que exige, um juiz investigador. Então todas as condições culturais para que uma delação premiada pudesse ser um instrumento eficiente nas mãos do Estado para enfrentar um tipo de criminalidade complicado não estão presentes.
Depois disso eu escrevi muito sobre o assunto. No livro Prova Penal e Sistemas de Controles Epistêmicos, publicado em 2014, eu ressalto os cuidados tomados nos EUA com mecanismos como a delação premiada. Por exemplo: a acusação não pode surpreender o investigado, não pode esconder informações dele. Se a acusação quer negociar com ele, tem que fazê-lo muito claramente, colocar na mesa quais são as informações que ela tem. Se não fizer isso, invalida aquele negócio e o suspeito não vai poder ser processado. E o juiz fiscaliza as regras do jogo. Ele exige que a acusação forneça para a defesa todas as informações que tem, para que o suspeito possa avaliar se quer ou não colaborar. Isso é a “proibição da surpresa”. O próprio processo penal brasileiro é alterado em 2008 para o juiz verificar se o Ministério Público está atuando corretamente, se está respeitando o fair trial [julgamento justo]. Isso quer dizer que na medida em que se vai colocar mais peso sobre o suspeito, é preciso dar mais força a ele. Em 2003, no Transação Penal, eu digo que não é possível ter uma delação premiada envolvendo um sujeito que tem todos os poderes e que pode decidir a medida do exercício desse poder [o MP] e aquele que não tem poder algum, que está às cegas, e que, obviamente, eu só posso imaginar que ele tem autonomia da vontade por ficção [o suspeito]. Naquele momento, eu sugeri, como medida de política criminal, que não levássemos adiante as delações premiadas.
Nós estamos vivendo um momento em que a democracia brasileira está em uma encruzilhada. Não podemos ter posições que olhem apenas para um lado das coisas. Eu seria inconsequente e irresponsável se fizesse isso. No livro Delitos dos Estados, dos mercados e dano social, todos os autores estão muito preocupados com um aspecto de todo esse movimento. Nos EUA, a delação premiada nasceu para enfrentar manifestações da criminalidade organizada, como a máfia. Mas países como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai têm em comum o fato terem vivido experiências autoritárias e estarem ingressando na democracia. E estarem fazendo esse ingresso na democracia em um momento econômico de transformação do capitalismo. O capitalismo se transforma na direção das grandes corporações internacionais. Nós saímos das empresas multinacionais, das empresas transnacionais, e passamos a ter um pequeníssimo número de corporações globais, com poder econômico-político superior à grande maioria dos Estados. Esse poder, se não for controlado, atenta contra a democracia, contra o poder que o meu voto tem de decidir qual é o projeto político que vai programar minha cidade, meu estado, meu país. E isso preocupa profundamente políticos, juristas e economistas de Alemanha, Itália, Portugal, Espanha. A operação “lava jato” e seus desdobramentos mostrou a intensa promiscuidade entre os poderes políticos e econômicos. No Brasil e na América Latina, não há um conjunto de instituições tão fortes como em outros lugares para controlar os abusos desses poderes. E essa aliança corrói a democracia, como a criminologia crítica vem afirmando.
Com esse cenário, temos que reconhecer que a delação premiada virou um instrumento do qual não podemos abrir mão. Se nós caminhássemos para uma cultura republicana e democrática mais afirmada, tivéssemos agências reguladoras mais republicanas, que fossem agências de Estado, e não de governo, o Cade funcionasse como instrumento de Estado, e não de governo, com conselheiros se colocando de forma firme e transparente contra essas práticas, se os nossos tribunais de contas funcionassem sob a inspiração de princípios republicanos democráticos, seria o caso de se abrir mão da delação premiada para investigar essa criminalidade. Mas nós não temos isso. Não temos uma cultura republicana que se expressa em atitudes concretas dos agentes públicos. Se nós conseguíssemos implantar essa cultura republicana, deveríamos abrir mão da delação premiada, pelos riscos que ela traz. Temos uma forte concentração de agentes políticos e agentes econômicos dominando a vida pública brasileira, e que estavam basicamente imunes às intervenções. Na minha opinião, o Direito Penal deve intervir o mínimo possível. Mas no caso deles, o Direito Penal não intervinha de forma alguma. E isso permitia que eles dominassem todas as estruturas. Então, a visibilidade que as delações premiadas deram às entranhas das relações entre políticos e empresários no Brasil foi positiva. As delações também funcionam como libertadoras de uma parte da economia, para que ela não seja mais refém de políticos que agem criminosamente. A delação premiada não é só o artigo 4º da Lei 12.850/2013, não é só um método, um meio de obtenção de prova. Hoje, a delação premiada é um instrumento de identificação do que é a nossa realidade política e econômica, do estágio real da nossa fragilíssima democracia.
ConJur — O senhor foi magistrado por 24 anos. Como avalia a recente glorificação de magistrados, primeiro com o então ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa e depois com o juiz federal Sergio Moro?
Geraldo Prado — Grande parte da sociedade cultiva uma cultura autoritária. Há esse desejo, que é perigoso, de encontrar a grande figura carismática que represente a sociedade, que seja o nosso Dom Sebastião. Hoje, quem assumiu esse papel é o Sergio Moro. Mas é perigoso para a democracia ufanearmos, idolatrarmos um juiz. E um juiz que, muito claramente, já há algum tempo, tem se afastado de pautas essenciais ao exercício da jurisdição em um Estado Democrático de Direito. Uma delas é o respeito absoluto à regra da imparcialidade objetiva. Não basta que o juiz internamente se considere imparcial, ele também tem que aparentar ser imparcial. Para poder estabelecer essa aliança, essa relação direta com a população, Sergio Moro abandona essa pauta e adota a pauta da população, de ser o justiceiro, a pessoa que vai resgatar a moralidade pública. E isso gera um segundo problema: ao assumir esse papel, ele passa a ser incapaz de assumir o outro, que é o de garantidor dos direitos de quem está sendo processado. Ele não tem como fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Temos na Constituição algumas vacinas contra ele esse risco. Mas quem vai aplicar essa vacina? O Supremo Tribunal Federal. Mas se o Supremo está, ele próprio, envolvido neste dilema, e querendo ser a solução deste dilema pela via da política criminal, e não pela via da aplicação da Constituição, ele não resolve o problema. Pelo contrário: pode se tornar uma parte dele.
ConJur — Quais são as maiores falhas da regulamentação da delação premiada no Brasil?
Geraldo Prado — A lei exige que a colaboração leve à recuperação total ou parcial do produto do crime e à localização da vitima em alguns casos. Mas ela não nos diz qual é a abrangência das delações. Afinal, nós temos regras que definem o juiz competente para o caso. E esse juiz competente é escolhido a partir do tipo de crime que está sendo investigado, e do lugar onde o crime foi praticado. Eventualmente, se começa uma investigação criminal e o sujeito resolve delatar todos os crimes que seu grupo praticou.
Se a delação premiada fornece informações a respeito de pessoas que não estavam sendo investigadas, de crimes que não estavam sendo investigados, de crimes que podem estar em andamento, que estão sendo planejados, não há nenhum indicativo na lei de como proceder. Esses crimes são ou não objeto de negociação? Se são objeto de negociação, em que medida o colaborador vai se beneficiar de reduções de pena ou de perdão judicial? Outra coisa: se é assim, se o sujeito vai revelar uma série de crimes, nós vamos convocar todos os Ministérios Públicos com atribuição para tratar deles? Ou só alguns serão chamados? Se os crimes revelados, por exemplo, são da esfera da Justiça Estadual, mas foram revelados ao Ministério Público Federal, quem conduzirá as investigações?
Se o acordo de colaboração premiada foi homologado por um ministro do Supremo Tribunal Federal, ele vincula o Ministério Público estadual? Vincula o juiz criminal estadual? Isso não está previsto na lei. Talvez porque quando a Lei 12.850/2013 foi editada não tivéssemos cogitado da extensão do nosso problema. Nós temos hoje um presidente da República investigado por organização criminosa, corrupção e obstrução de justiça.
ConJur — No artigo em que analisa os acordos do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e do doleiro Alberto Youssef, o jurista português José Gomes Canotilho afirma que crimes estranhos à organização criminosa não podem usar informações e provas decorrentes de acordo de delação premiada. O que o senhor pensa disso?
Geraldo Prado — Tanto o Canotilho quanto o José Carlos Porciúncula têm a mesma objeção ao emprego das informações de delações para casos que não estavam sendo previamente investigados ou para casos anteriores à entrada em vigor da lei, pensando em uma hipótese de retroatividade dos aspectos processuais da lei. Eu não concordo com eles. As provas são pré-existentes. O que a delação premiada faz é revelar essas informações. E a delação premiada não é meio de prova. A palavra do delator não é verdade absoluta. Eu estou plenamente de acordo com Canotilho e Porciúncula quando eles dizem que há uma supervaloração epistêmica da palavra do delator. Por mais que o legislador exija provas de corroboração, a tendência de muitos juízes é dar um valor especial à palavra do delator. Isso não está correto. Considerando isso tudo, o que o delator faz quando revela crimes que sequer eram conhecidos, mesmo aqueles que não foram praticados por organização criminosa, é dar notícia da existência dessas provas. Aí eu uso contra eles o argumento que eles usam em outro momento: o nosso sistema é um sistema de obrigatoriedade de investigação. O artigo 5º do Código de Processo Penal determina à autoridade policial que investigue infrações penais. O Ministério Público, por sua vez, tem a obrigatoriedade de exercer a ação penal. Mas essa obrigatoriedade fica mitigada na lei. Mas se há o princípio da obrigatoriedade da investigação, não se pode descartar elementos probatórios. Eles não estão sendo obtidos por meios ilícitos. Então, não há ilicitude probatória neste contexto.
Mas há outro problema: o da avaliação exagerada dessas informações. A leitura dos juízes de que as palavras do delator têm credibilidade absoluta não está correta. É preciso que os juízes avaliem se as declarações são corroboradas por outras provas. Afinal, é necessário assegurar o direito de defesa da pessoa delatada, que não pode ser condenada só com base na palavra do colaborador. É necessário haver esse equilíbrio. Se o processo só pode levar a um resultado, ele não é processo. Ele tem que permitir dois resultados: condenação e absolvição.
Agora, se essas informações permitiram ao Ministério Público formar um juízo, ele firma um acordo de delação com o suspeito e o termo é homologado pelo juiz, seu conteúdo passa a ser lei entre eles. Aquilo que foi acertado com o delator tem que ser respeitado. As pessoas estão achando que esse mundo é o mundo mágico, que é um mundo de pessoas virtuosas. Esse é o mundo do crime, é o mundo de gente criminosa. Quando delatam, as vidas dos colaboradores mudam. Além do risco de serem mortos, eles sofrem um grande impacto econômico. Quando um empresário opta por este caminho, ele sabe que está empurrando a sua empresa para uma desvalorização extraordinária.
E não é só pelo pagamento de multas e indenizações que ele assume perante os prejudicados pelos seus crimes, mas também pela depreciação de sua imagem. Um exemplo disso são esses movimentos de boicote a produtos e serviços de empresas vistas como corruptas. Então, não se pode chegar depois de um movimento dessa natureza, com a homologação da delação e a absolvição do delatado, e se dizer que o acordo não vale mais. Essa é uma interpretação errada. Quando se diz que a delação deve contribuir para a identificação dos demais coautores e participes e das infrações penais por eles praticadas, a revelação da estrutura, recuperação total ou parcial do produto e etc., isso aqui tem que estar em um nível do provável. Se não estiver, o termo não deve ser homologado. O nível do provável sempre leva em consideração a possibilidade de não ser provado. Caso contrário, há uma farsa contra os delatados. Então desde que não tenha havido má-fé das partes do acordo, uma vez homologado, ele tem que ser preservado. Tem que ser respeitado.
Se absolver os delatados, o contrato deve ser mantido. Se não absolver, o contrato também deve ser mantido. O caso do Joesley Batista, da JBS, por exemplo. Não me parece que seja uma delação passível de rescisão. Não há, pelo que eu conheço daquilo tudo, uma condição concreta jurídica para se rescindir a delação, quer ela resulte ou não em uma condenação de alguém, ou até mesmo no recebimento da denúncia. Se sob a ótica do Ministério Público Federal e do ministro relator [Edson Fachin] ela, no nível da probabilidade, atendeu aos requisitos da Lei 12.850/2013, o que vem depois tem que ser imprevisto mesmo, porque é da natureza do processo. Obrigatoriamente tem que ser imprevisto. E não há condição de se rescindir. Há quem diga que as delações dos donos da JBS foram muito benéficas a eles. Mas os crimes que eles revelaram são um atentado à democracia – algo proibido pela Constituição de 88. Nós não vamos voltar ao passado, nós não podemos aceitar uma volta ao passado. Se nesse cenário se revela uma situação que coloca a democracia em risco, eu sou capaz de compreender os termos de uma delação premiada como a da JBS. O jurista não pode ser cínico, não pode avaliar a situação pela metade.
ConJur — Acordo de delação premiada pode estabelecer benefício que não seja penal?
Geraldo Prado — Negociações em torno de aspectos de cláusulas não necessariamente jurídico-penais também deveriam ser objeto de lei. Não há a menor condição de validar cláusulas que permitam que colaboradores incorporem produto de crime ao seu patrimônio pessoal, como foi o caso do Alberto Youssef. Aquilo não só é inválido juridicamente como valida a crítica de que a delação premiada caminha por vias não éticas. O Porciúncula diz que, na delação premiada, o Estado abre mão de seguir o caminho ético para enfrentar a criminalidade. Se a delação já sofre genericamente essa acusação, o caso específico do Youssef comprova isso, porque seu acordo de colaboração permite que ele incorpore ao seu patrimônio bens de origem duvidosa. Isso é uma mistura indevida de institutos penais existentes em outros países, como nos EUA. Lá, a premiação pela recuperação de produto do crime não vai para o agente criminoso, e sim para um terceiro que delata o esquema. É o whistle blowing. Mas não se pode aplicar essa fórmula ao delator. A partir do momento em que ele reconhece sua responsabilidade em crimes, ele deixa de ser testemunha. Ele passa a ser uma pessoa interessada. Portanto, não pode ser premiado para além daquilo que a lei penal estabelece no campo penal. Fora que não é possível tratar de direito patrimonial de terceiro em negócio jurídico penal.
ConJur — O artigo 4º, parágrafo 16, da Lei 12.850/2016, afirma que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. Isso quer dizer que alguém pode ser condenado apenas com base nas declarações de mais de um delator? Ou também é preciso ter outras provas?
Geraldo Prado — De forma alguma. O juiz não pode fundamentar a condenação estritamente em colaborações premiadas. Isso é uma regra epistemológica. A pessoa que assume a condição de agente colaborador assume que aquilo que ela diz é suspeito. Ela sabe disso. Quem recebe essa informação tem essa consciência de que ela é suspeita. Essa informação é suspeita enquanto prova e enquanto meio de obtenção de prova. Portanto, contribuições probatórias de colaboradores não podem fundamentar sentenças condenatórias sem que haja no processo provas distintas das delações, provas que deem apoio a elas. A corroboração mútua é uma estratégia inquisitorial, autoritária, que deforma o próprio conceito de prova que a Constituição de alguma maneira estabelece quando assegura o contraditório.
ConJur — O Ministério Público, no Brasil, não tem poder de punir. Sendo assim, ele pode negociar a pena de um delator?
Geraldo Prado — Nós não temos a tradição de o Ministério Público indicar a quantidade de pena que, na opinião dele, seria correta, mas vamos supor que ele fizesse isso. Ainda assim, seria inválido se o juiz não homologasse. Então a homologação judicial funciona um pouco como a sentença da transação penal. A transação penal parte de uma proposta do Ministério Público, mas só se concretiza com a sentença. E é interessante porque não tem processo – o procedimento só vira processo na sentença. É como se fosse um inquérito. Há um inquérito, o MP faz uma proposta, o autor do fato aceita e o juiz homologa por sentença.
Na delação, a homologação vai cumprir esse mesmo papel. Há muita objeção em relação a isso. Já ouvi de professores que a quantidade de pena não poderia ser homologada, pois o juiz, com isso, estaria fazendo um prognóstico de responsabilidade. Isso poderia estar mais claro na lei. Agora, por que o Ministério Público faz isso? Porque ele tem que oferecer alguma coisa segura ao delator. Este não pode correr o risco de contar o que sabe e não ter certeza se o juiz irá respeitar o acordo.
A sentença não pode decorrer de uma objeção do julgador em relação à delação premiada. Se o julgador tem objeção em relação à delação premiada, ele não dá redução alguma. Seria muito mais transparente, do ponto de vista do Estado de Democrático de Direito, se houvesse previsão legal específica para a negociação de pena. A previsão legal que tem é de maneira ampla. Mas há legalidade ou não? Quando a Constituição de 1988 estabeleceu que são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos, ela trouxe uma fórmula, e foi concretizada com o tempo. A legalidade aqui é um pouco isso: a Lei 12.850/2013 fixou o requisito da homologação, mas já estamos sentindo que só isso não é suficiente. Então seria bom ter uma alteração legislativa para, muito claramente, permitir que a pena negociada e homologada pelo juiz seja respeitada. Mas é claro que o juiz pode negar essa homologação.
ConJur — O juiz que homologa acordo de colaboração premiada pode julgar as ações decorrentes dessa delação?
Geraldo Prado — Nossos juízes têm que entender que a delação não é verdade absoluta. Eles têm que zelar para garantir ao delatado a mais ampla defesa, tem que buscar suspender seus juízos prévios sobre a delação. Portanto, o juiz que homologa a delação não pode ser o juiz da causa criminal. Isso porque ele já está absolutamente convencido da veracidade das informações do delator, e da culpa dele e das pessoas que ele acusa. É psicológico, e afeta a imparcialidade objetiva do juiz. Nesse sentido, as condenações proferidas pelo Sérgio Moro em casos em que ele atuou homologando as delações premiadas são nulas. É dramático isso.
A minha vontade é de ver quem cometeu crime assumir juridicamente suas responsabilidades. Mas não é possível imaginar que o juiz que homologa a delação, depois de acompanhar os depoimentos do delator, os documentos que ele apresentou, as perícias, vá julgar a causa objetivamente. Agora, se for outro juiz, ele poderá avaliar as informações do delator de forma mais distanciada, garantindo o direito de defesa dele e dos demais acusados.
ConJur — Há quem afirme que a coação para que um acusado firme acordo de delação premiada é uma espécie de tortura. O senhor concorda com essa crítica?
Geraldo Prado — Sim, quando a pessoa que faz a delação está presa ou pelo menos tem uma ordem de prisão expedida contra ela. Essa afirmação não é nossa. Ela é o título de um texto clássico do autor norte-americano John Langbein: Torture and plea bargaining. E aí eu acrescentaria não apenas a questão da prisão, mas outras também. Não há duvida que a autonomia da vontade fica afetada quando a pessoa está constrangida com a execução de uma prisão, com a ameaça concreta de uma prisão. Então dizer que a pessoa nessa situação tem clareza de seus atos e das consequências deles não é correto. Claro que quando falamos que “é uma forma de tortura”, não é que seja uma espécie de tortura. É uma metáfora. Equivale à tortura. É algo que remete à ideia da tortura porque afeta a capacidade de autodeterminação do sujeito.
Uma tática usada para isso é a de fazer acusações exageradas, o que é chamado de overcharging. Eu fiz um parecer no caso da Fifa contra o britânico Raymond Whelan, acusado de chefiar a máfia dos ingressos da Copa do Mundo. O que o Ministério Público fez com ele? Juntou uma dúzia de acusações sem base alguma para forçar uma situação. O estudo que se faz hoje de muitos dos acordos de delação premiada no âmbito da “lava jato” é que algumas daquelas acusações não têm nenhuma base. Então policiais e procuradores chegam ao indivíduo e dizem “nós vamos te acusar e você pode ser condenado a 60, 80 anos de prisão”. O overcharging não se dá somente quando se acusa de crimes sem justa causa, mas também quando se manipula regras de aplicação de pena. O sujeito é acusado de 48, 120, 220 lavagens de dinheiro. Multiplique isso pelo tanto de pena. Tudo bem, ele “só” vai cumprir 30 anos. Em compensação, não adianta trabalhar, porque a cada dois dias trabalhados o sujeito vai abater um dia da pena de 120 anos. Então isso funciona psicologicamente como instrumento de tortura. Tortura psicológica. Não é que seja tortura, equivale a tortura. Na realidade, tanto a tortura quanto essas estratégias ilegais, inconstitucionais, buscam atingir o mesmo objetivo: afetar a capacidade de autodeterminação da pessoa.
ConJur — E isso invalida o acordo de delação premiada?
Geraldo Prado — Invalida o acordo.
ConJur — Consequentemente, invalida as condenações baseadas em tal delação?
Geraldo Prado — Sim. Essa é a minha posição. Invalida as condenações dessas pessoas, e elas não podem ser julgadas novamente por esses fatos.
ConJur — O senhor é uma das raras pessoas que tem experiência no Ministério Público, na magistratura na advocacia. Com base na sua vivência dessas carreiras, como o senhor avalia as mudanças trazidas pela Lei 12.850/2013 para as investigações de organizações criminosas?
Geraldo Prado — As investigações envolvendo organizações criminosas avançaram muito no Brasil a partir da Lei das Interceptações Telefônicas (Lei 9.296/1996) e do entendimento do Ministério Público, que se consolidou nos anos 1990, de que deveria profissionalizar suas equipes auxiliares para tornar eficaz o afastamento dos sigilos bancário e fiscal. De nada adiantaria afastar os sigilos bancário e fiscal sem ter uma equipe de auditores, de contadores, de especialistas capazes de processar aquelas informações e perceber padrões de comportamento indicativos da prática de crimes. Sem isso, continuaríamos no estágio em que estávamos nos anos 1980. Quando os dados são processados artesanalmente, como ocorria nos anos 1980, há muito menos chance de entender o contexto, e, portanto, de levar em frente as investigações, de denunciar alguém, de dar início a um processo e ter sucesso com a condenação de criminosos culpados.
O sucesso das recentes operações deve ser creditado mais à qualidade da investigação e à compreensão de que a prova testemunhal, que é fundamental no processo penal, tem que se referir a esse material de inteligência e menos à impressão de uma testemunha sobre o que aconteceu. Essa qualificação das investigações desmoraliza a tese de que tem que prender para forçar o sujeito a delatar para chegar ao resultado, que é uma metodologia empregada com alguma frequência na 13ª Vara Federal de Curitiba pelo juiz Sergio Moro. Outro fator bastante relevante é a cooperação policial e judicial internacional. Então, o que há de melhor nessas investigações vem da inteligência. O que há de pior vem da violação de direitos, como o abuso de prisões preventivas para obter declarações. Esse é um método medieval, que pode impressionar as pessoas, os cidadãos comuns, mas que, do ponto de vista da conjuntura, é como se você prendesse um menino vendedor de drogas em uma boca de fumo supondo que nunca mais ninguém venderá drogas ali. A inteligência fornece elementos para mudar o rumo dessa história.
ConJur — No ano passado, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) defendeu que houvesse uma reforma na Lei das Organizações Criminosas para proibir a celebração de acordo de delação premiada com réu preso. O que o senhor pensa dessa proposta?
Geraldo Prado — Estou plenamente de acordo. Essa, inclusive, é uma das propostas de um grupo de professores que foi apresentada na Câmara dos Deputados para o projeto do novo Código de Processo Penal. Isso é o básico elementar: a pessoa tem que estar tranquila, em condições de analisar os cenários para poder tomar uma decisão sobre seu futuro. Ninguém pode fazer isso constrangido. Contra isso, vão alegar que muitas delações da “lava jato” não ocorreram com réu preso. Contudo, alguns casos em que o sujeito foi preso pela manhã, disse que iria delatar à tarde e foi solto têm uma eficácia pedagógica muito grande.
ConJur — A operação “lava jato” vem ajudando a espetacularizar a Justiça Criminal?
Geraldo Prado — O fenômeno da espetacularização da Justiça Penal é quase que contemporâneo ao desenvolvimento da mídia. É evidente que cada época tem a sua mídia, e que cada mídia tem o seu impacto na sociedade. Hoje, pela imagem, nós temos uma mídia muito mais impactante. Com a televisão e as redes sociais, ela é muito mais rápida e abrangente do que no passado. A diferença de hoje para o passado é apenas em termos de intensidade. Um exemplo: em 1992, no fim do processo de impeachment do presidente Fernando Collor, a atriz Daniela Perez foi assassinada. O impacto e a exploração midiática da morte da Daniela Perez sufocaram a notícia da renúncia do Collor, talvez um dos episódios mais importantes da história política brasileira. Esse foi um caso emblemático. Outro é o do julgamento do mensalão, obviamente.
Cada caso tem uma característica. Hoje há um deslocamento dessa atenção para órgãos mais profissionais do Poder Judiciário, para o Supremo Tribunal Federal, para o juiz Sergio Moro. No passado a atenção era mais direcionada para o Tribunal do Júri. Se quisermos decisões mais justas, temos que encontrar um ponto de equilíbrio para que os juízes tenham a tranquilidade para decidir contramajoritariamente, tenham tranqüilidade para decidir contra a opinião pública sem correrem risco de ser agredidos no meio da rua.
O que diferencia a “lava jato” desses outros casos é que nela os vazamentos seletivos parecem ter sido usados como parte de uma estratégia para proteger decisões ilegais contra reformas em instâncias superiores. Há um artigo do Sergio Moro de 2004, muito conhecido, em que ele diz que essa foi uma estratégia usada com muito sucesso na operação Mãos Limpas, na Itália. Quem quiser concluir algo disso, que conclua… Essa é uma diferença: o ator judicial usar a mídia. Não que no passado os atores não usassem a mídia para influenciar os julgamentos, mas o próprio Judiciário usar isso para se proteger, para validar decisões que a jurisprudência claramente indica como sendo inválidas, é uma novidade. Mas a “lava jato” é só uma novela mais intensa do que a novela mensalão, a novela Daniela Perez, a novela Doca Street, entre outras.
ConJur — Tivemos alguns episódios na “lava jato”, primeiro com o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado e políticos do PMDB, depois com o sócio da JBS Joesley Batista e Michel Temer e Aécio Neves, nos quais um interessado em fazer acordo de delação premiada grava conversa sobre possíveis crimes. Essa é uma medida legítima?
Geraldo Prado — Se eles foram o braço de uma investigação para agir assim, sem formalização, isso não vale. No caso do Sergio Machado, que tem mais elementos, existe uma suspeita de que ele não agiu daquela forma por iniciativa própria. Se ele foi incentivado ou, além de incentivado, foi treinado, municiado de elementos para agir da maneira como agiu, a própria Lei do Crime Organizado não autoriza isso. Ela diz que esta é uma ação de infiltrado, e infiltrado tem que ser um agente do Estado com uma identidade clandestina. Nesse exemplo específico do Sergio Machado, se ficasse provado que ele foi incentivado ou treinado, suas gravações seriam inválidas. Agora, se ele, desesperado, acha que precisa disso e grava uma conversa, azar de quem conversou com ele.
ConJur — Quais são os limites entre uma ação controlada e o flagrante provocado?
Geraldo Prado — O problema da infiltração e da ação controlada é que elas podem fugir ao controle e levar à produção de resultados antijurídicos. E qual o grau de cobertura jurídica que se dá a isso? Como é que você vai explicar para uma vítima que ela sofreu um crime e você não vai processar o envolvido porque ele é um agente do Estado que estava infiltrado? A ação controlada até que é uma ideia boa. Mas não se pode pegar infiltração e jogar na ação controlada. E também não se pode transformar a ação controlada em um incentivo para alguém cometer crimes.
Publicado no Consultor Jurídico.