Desde as primeiras reportagens publicadas no The Intercept Brasil sobre a Operação Lava-Jato, em 09 de junho de 2019 [1], me senti tentado a voltar a um texto que sempre considerei essencial para compreender a tensão entre verdade e mentira na política.

Com efeito, em 1967, em consequência da cobertura e das opiniões que emitira por ocasião do processo de Eichmann em Jerusalém, para a revista The New Yorker (1963), Hanna Arendt publica o ensaio denominado “Verdade e Política” [2], que tem por objeto, entre tantos, o fenômeno da manipulação dos fatos para fins políticos em âmbito e com profundidade bem maiores que os reconhecidos pela tradição da Ciência Política que remontava a Maquiavel.

O senso comum da política, ou “lugar comum” como a ele Arendt se referirá, consistiria em que “nunca ninguém teve dúvidas que a verdade e a política estão em bastante más relações, e ninguém, tanto quanto saiba, contou alguma vez a boa fé no número das virtudes políticas” [3].

Mesmo ao fim do longo e denso ensaio e depois de ter discorrido a respeito da verdade filosófica, da racional e da factual, a filósofa reconhece nela própria a tendência de tratar do domínio político “como um campo de batalha de interesses parciais e adversos, onde nada contaria além do prazer e do lucro, do espírito partidário e do desejo de dominação” [4].

Interessa aos meus propósitos relembrar o modo como Arendt abordou a “Mentira”, o uso político da “Mentira”, sua função neste contexto e o significado da “Verdade e da Mentira” relativamente à instituição Poder Judiciário, lugar a que Sergio Moro estava formalmente vinculado até renunciar ao cargo de juiz e aceitar o convite do vencedor das últimas eleições para ser seu Ministro da Justiça e Segurança Pública, convite que trazia implícita a virtual indicação de Moro para uma das próximas vagas de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

As reportagens do The Intercept Brasil, de Reinaldo Azevedo, da Folha de S.Paulo e da revista Veja, que examinaram farto material obtido pelo The Intercept Brasil e não identificaram indícios de adulteração, revelam que Sergio Moro sugeriu estratégias a Deltan Dallagnol, Procurador da República, insinuou a substituição de membros do Ministério Público Federal (MPF) em audiências de processos da Operação Lava-Jato, interveio no planejamento e execução de atos de investigação criminal e de natureza cautelar, mencionou a necessidade de provas específicas, de seu conhecimento, para admissão de acusações já ajuizadas sem estas provas e, hipoteticamente, antecipou juízos de valor sobre acordos penais ainda em fase de negociação.

Tudo isso sem embargo de sugerir enfaticamente ao mesmo Procurador da República que interviesse junto à mídia, apresentando publicamente versão acusatória contrária ao que denominou de “showzinho da defesa” do ex-presidente Lula que havia interrogado naquela mesma tarde.

O ponto central do artigo reside na atitude ambígua do agora ministro da Justiça e Segurança Pública: não reconhece a autenticidade das mensagens, justifica o seu conteúdo, se desculpa por eventuais “descuidos” (sugerir ao MPF testemunha a ser ouvida pelo futuro acusador ainda na investigação criminal contra o ex-presidente Lula) e até por ofensas involuntárias a grupo político de direita, em resumo, lida com os fatos como se não fossem verdadeiros, no entanto podendo ser. Ou, nas palavras de Hanna Arendt: entra em guerra contra a verdade [5].

O caráter clandestino das mensagens [6], o propósito de confundir relações profissionais públicas durante o processo com a liderança ilegal de investigações, pois que a lei e a Constituição proíbem ao juiz investigar para preparar um futuro processo, são indicativos seguros daquilo que a filósofa escreveu acerca das práticas políticas de conversão de “verdades” em “meras opiniões”, alterando o estatuto da “verdade” com o objetivo franco, reconhecia Arendt já nos anos 60, de reescrever a história [7].

“A verdade é odiada pelos tiranos” [8], lembrava Arendt. “O mentiroso é um homem de ação” [9], pois que nele está presente a coragem, muitas vezes motivada por idealismo ou parcialidade de grupo [10], havendo de se precaver contra a possibilidade de manipulação até mesmo das evidências factuais de cuja falsidade, como na hipótese dos falsos testemunhos, sempre se pode suspeitar [11].

Essa é a questão que importa e que diz com as condições de a verdade lograr superar todos ataques que por motivos políticos lhes são endereçados. Em uma sociedade plural e democrática parece inadmissível que se atente contra a “própria matéria factual” [12].

Não faz sentido, salvo como exercício tirânico do poder político, afirmar como verdade que a “Terra é plana”, tal como não faria sentido declarar que Jânio Quadros não renunciou à presidência do Brasil.

Quando ações dessa natureza têm lugar é porque a “Mentira” tornou-se funcional ao exercício do poder político, possibilitando intervenção e alteração profunda no curso dos acontecimentos que são próprias da parcialidade, da tomada de partido em favor de um determinado grupo ou ideologia. Afirma Arendt: “o mentiroso quer mudar o mundo” [13].

Neste contexto o mentiroso tem a seu favor o elemento surpresa, pois como o que vale é a narrativa que define para os fatos e não a verdade factual, os “fatos” nunca o surpreendem, na medida em que sempre terão a aparência que o mentiroso lhes atribuir previamente. [14]

Daí que a “Mentira” é coerente, organizada e lógica [15]. Os “fatos” em sua realidade não são necessariamente coerentes ou organizados. São meramente contingentes.

Na “Mentira” o relato sobre os fatos adquire o status de uma história verossímil. O mentiroso político é verossímil, como registra a história da diplomacia ocidental na qual a “Mentira” teria seu valor político reconhecido à partida.

Uma sentença construída a partir da mentira organizada tende a ser muito mais convincente que a decisão que resulta do contraditório entre provas e versões apresentadas pelas partes, que não têm o poder, quaisquer que sejam elas, MP ou defesa, de conhecer “toda a verdade”. E é esse potencial imenso de servir ao poder arbitrário que, para a filósofa, leva a que as mentiras encerrem um elemento de violência [16].

Mesmo assim, as complexas sociedades contemporâneas são dotadas de meios para impugnar a “Mentira”, operando no nível em que esta é contestada por evidências factuais que desorganizam a “história elaborada com base na Mentira”, ainda que esta, por descompromisso a priori com a “Verdade”, seja constantemente alterada. A “Verdade” pode ser uma só, mas a “Mentira” tem mil faces.

A imprensa livre é um desses “inimigos dos enganadores”, a que se referia Arendt. Como que antecipando a natureza das objeções ao trabalho jornalístico do The Intercept Brasil, por Moro e pelos que politicamente colheram os resultados de processos criminais dirigidos por um juiz ao qual faltou o atributo da imparcialidade, algo evidente nas mensagens que ele mesmo timidamente reconhece, a filósofa alertará: “A história está cheia de exemplos em que aqueles que dizem a verdade de fato passaram por ser mais perigosos, e mesmo mais hostis, que os opositores reais” [17].

Não é somente a imprensa livre, no entanto, a instituição que se opõe à Mentira como prática política. Também o Poder Judiciário fundamenta e legitima sua atuação e existência na busca da verdade. Arendt lembrará ao leitor que o Judiciário está entre as instituições às quais, “contrariamente a todas as regras políticas, a verdade e a boa fé sempre constituíram o mais alto critério da palavra e do esforço” [18].

Há, todavia, uma condição para o que o Poder Judiciário seja respeitado como guardião da busca da verdade desinteressada. A imparcialidade do julgador configura o a priori da confiança no desinteresse que orientará sua convicção a respeito dos fatos que irá julgar.

A “imparcialidade” é adversária das práticas de comunicação e orientação privadas de casos públicos – em si uma grave infração ética – porque se alimenta da solidão. O juiz é solitário na sua tarefa de “ajuizar a existência de um fato”. Beneficia-se do caráter coletivo e plural do processo, do contraditório como elemento de constituição das condições para que possa decidir com o menor risco possível de erro comum às decisões humanas. Mas a decisão sobre os fatos demanda imparcialidade e solidão.

Hanna Arendt afirmará para nós que a lemos 50 anos depois: “Eminentes entre os modos essenciais do dizer-a-verdade são a solidão do filósofo, o isolamento do sábio e do artista, a imparcialidade do historiador e do juiz, e a independência do descobridor de fato, da testemunha e do repórter” [19].

O juiz é um ator político, mas sua atuação é política porque se legitima por estar distanciado dos interesses em disputa. A sua força vem da imparcialidade que o orienta no processo e julgamento. Seu agir é solitário. O problema – filosófico e prático – é que hoje Sérgio Moro não é mais juiz, de modo que a sua parcialidade como ministro do governo da “Terra plana” dispensa de maneira explícita declarações comprometidas com a Verdade a respeito das evidências factuais apresentadas nas reportagens do The Intercept Brasil.


[1] https://theintercept.com/2019/06/09/editorial-chats-telegram-lava-jato-moro/ Consultado em 20 de julho de 2019.

[2] ARENDT, Hanna. Verdade e Política. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1995.

[3] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 9.

[4] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 58.

[5] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 26. “… não é difícil imaginar qual seria o destino da verdade de fato se o interesse do poder, quer seja nacional ou social, tivesse a última palavra em tais questões. O que nos reconduz à nossa suspeita de que possa ser da natureza do domínio político estar em guerra contra a verdade em todas as suas formas…”

[6] As conversas nunca foram documentadas formalmente em procedimentos. Delas as pessoas tomaram conhecimento apenas por meio de fonte desconhecida que as revelou ao The Intercept Brasil.

[7] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 40.

[8] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 28.

[9] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 41.

[10] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 39.

[11] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 31.

[12] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 25.

[13] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 41.

[14] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 43.

[15] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 42.

[16] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 44.

[17] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 48.

[18] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 54.

[19] ARENDT, Hanna. Obra citada. p 54.

Artigo publicado no Consultor Jurídico.