Geraldo Prado [1]

O ano de 2022 começa com a entrega à editora Marcial Pons dos originais da 2ª edição espanhola do livro sobre “A cadeia de custódia das provas”. Nesta versão contemplo a monografia de 1978 do grande e querido professor Rogério Lauria Tucci acerca do “corpo de delito”.

A obra excepcional, como todo escrito, é uma obra do seu tempo, de uma época em que a estrutura inquisitória do processo penal era inquestionável, salvo por raras vozes como a de Frederico Marques, o juiz era o incontestável pesquisador da verdade (hoje chamaria de “Google da verdade real”), o caráter político do próprio “discurso sobre a verdade” no processo penal era ignorado e a conjuntura incentivava chamar a criminosa ditadura brasileira pelo apelido fofo de “governo revolucionário”.

As transformações que viriam a ser propostas pela Constituição de 1988, no âmbito do processo penal brasileiro, haveriam de enfrentar esta experiência inquisitória enraizada profundamente e a poderosa cultura inquisitória seguiria, como segue, produzindo seus frutos.

O preço que o estado de direito paga por isso no Brasil é alto. No tocante à violação das regras sobre instituição e preservação da cadeia de custódia das provas digitais os tribunais se orientam equivocadamente por “salvar” a prova imprestável, jogando uma boia na direção do mau trabalho policial e do MP, como se a função dos juízes fosse corrigir e não fiscalizar a legalidade da investigação criminal. O país ainda paga um preço caríssimo, em termos de democracia, liberdade pessoal e estabilidade econômica, por ter aceitado por tanto tempo a abusiva e artificial “competência universal” da Lava Jato de Curitiba. Perto disso, no entanto, a jurisprudência permissiva das provas digitais ilegais por violação da cadeia de custódia é infinitamente mais perniciosa e grave.

Talvez seja necessário um desdobramento do tipo que levou a um governo de extrema-direita, beneficiado pela manipulação de processos judiciais, para a comunidade jurídica perceber que não se relevam funções de controle de prova e acusação sem consequências graves.

Não ouso ser o sujeito do “eu avisei”. Prefiro apresentar argumentos racionais, jurídicos e históricos, para no debate acadêmico e na trincheira dos processos criminais concretos postular que o escrupuloso devido processo legal é o GPS/bússola que diz que o gelo visível é iceberg.

Bons capitães e capitãs saberão evitar a colisão ainda que ao risco da adoção de medidas antimajoritárias que soam impopulares a ouvidos que diariamente clamam por punição como “política pública hegemônica”.


[1] Geraldo Prado é Investigador Integrado do Ratio Legis – Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa [Projeto: Corpus Delicti – Estudos de Criminalidade Organizada Transnacional] e advogado. Título da obra: A cadeia de custódia das provas: 2ª edição espanhola.