Este artigo foi redigido em homenagem ao Desembargador José Fernandes Filho, e publicado originalmente no livro Em torno da Jurisdição, de Geraldo Prado. A obra em questão é uma coletânea de textos, votos e artigos produzidos pelo autor entre 1995 e 2010.

1. Introdução

A Lei nº 9.099/95 introduziu a transação penal no direito brasileiro de sorte a concretizar o comando contido no artigo 98, inciso I, da Constituição da República.

A possibilidade de o suspeito da prática de uma infração penal de menor potencial ofensivo sujeitar-se a penas restritivas de direito por meio de acordo com o Ministério Público, homologado judicialmente, mudou profundamente o panorama do nosso processo penal. Com certeza, as categorias do tradicional processo penal em contraditório ficaram abaladas. Além disso, o próprio papel dos sujeitos processuais foi questionado: afinal, quais eram os limites da atuação do Ministério Público e o que caberia ao juiz criminal, em um modelo inteiramente novo?

A novidade encontrou tradições e velhas formas de pensar, que se puseram a “enquadrar” a transação penal conforme os paradigmas do positivismo jurídico que ainda vigorava na década de 90 do século passado. “Natureza jurídica” da proposta e da sentença de transação penal e estatuto jurídico das partes forjaram os termos do debate que dominou o cenário pós Lei dos Juizados Especiais, e ainda hoje é comum constatar que as discussões giram em torno desses eixos, que por muitas razões estão ultrapassados.

Nos dias atuais tem lugar o processo legislativo de edição de um novo Código de Processo Penal no Brasil, a partir do texto base do anteprojeto elaborado por comissão de juristas composta por Hamilton Carvalhido (coordenador), Eugênio Pacelli de Oliveira (relator), Antonio Correa, Antonio Magalhães Gomes Filho, Fabiano Augusto Martins Silveira, Felix Valois Coelho Junior, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral.

O projeto (PLS 156/09) busca dar conta da concreta necessidade de dotar o Brasil de um Código de Processo Penal que difira na base (estrutura), no modelo e nas práticas do texto que está em vigor desde o Estado Novo (Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941).

Nele há clara opção por um método de resolução consensual das causas penais, o procedimento sumário, por meio do qual será introduzida a negociação direta em torno das penas, mesmo de prisão, em hipóteses muito mais abrangentes que a prevista para a transação penal pela Lei nº 9.099/95.

Não há dúvida de que o debate adormecido sobre a medida em questão ressurgirá e ganhará novo fôlego, o que justifica retornar ao tema.

Daí a escolha da matéria para homenagear o Desembargador José Fernandes Filho, em uma área que lhe é particularmente cara: os Juizados Especiais.

2. A transação penal no direito brasileiro

O artigo 76 da Lei nº 9.099/95 instituiu entre nós a transação penal. Porque esta lei define seus contornos principais, ela servirá de paradigma para a breve análise em curso.

Com efeito, dispõe o artigo 76 da referida lei que, nos casos de infração de menor potencial ofensivo para os quais seja estipulada ação penal pública, condicionada ou incondicionada, o Ministério Público poderá propor a aplicação direta de pena restritiva de direitos ou multa, desde que preenchidas as condições previstas no citado dispositivo.

O § 4º do mencionado preceito, por sua vez, dispõe que o juiz acolherá a proposta em questão, aceita pelo autor do fato, e emitirá sentença por meio da qual aplicará a pena negociada. Esta decisão não importará reincidência, tampouco produzirá efeitos civis e impedirá que o investigado/acusado se “beneficie” da transação novamente em um período de cinco anos.

Até a entrada em vigor da Lei dos Juizados Especiais não havia nada que formalizasse os acordos entre acusação e Defesa no processo penal brasileiro. Prática relativamente comum, em especial em lugares menos populosos, em que os envolvidos eram conhecidos ou mesmo conviventes, e em casos de menor repercussão penal (mas não somente nestes), a transação penal não gozava, porém, de estatuto jurídico próprio e assim estava condenada à clandestinidade ou aos caprichos dos sujeitos processuais que a protagonizavam.

A novidade de então, pois, consistiu em conferir visibilidade e institucionalizar o acordo penal, definindo-o em um âmbito em que se dispensava por completo a prova.

O mito – ou fundamento – de que a prova penal conduzia à “verdade real”, que ao seu tempo seria a base da sentença condenatória, começava a esfarelar-se no nosso processo.

Era necessário, todavia, “analisá-la” (a transação penal), isto é, conferir-lhe significados que orientassem os profissionais que nos últimos dois séculos afirmavam que de uma determinada maneira (inquisitorial) a prova penal era o elemento de justificação das condenações.

E o método analítico preferencial da doutrina jurídica dos anos 90 no Brasil, ainda não totalmente abandonado, apesar da fragilidade de seus pressupostos, consistia em buscar nos “escaninhos” do positivismo jurídico “categorias” para enquadramento das práticas jurídicas.

A isso se costuma (va) dar o nome de “natureza jurídica”, como se o direito não fosse expressão cultural, especificamente denotada pelo exercício de poder que autoriza, algo criado pelo homem e, portanto, além de qualquer “natureza” prévia, a-histórica e neutra!

O uso ideológico das categorias jurídicas, “analisadas” conforme sua “natureza jurídica” é evidente: o acerto do emprego dessa técnica ou prática dependeria da consideração acerca de seu enquadramento a priori no “mundo jurídico”, pré-condição para a produção de efeitos jurídicos. Em outras palavras: “o mundo jurídico” em tese contempla todas as respostas válidas às questões postas, ainda que tais questões resultem da adoção de mecanismos idealizados a partir de outras matrizes jurídicas, cuja história difere substancialmente da nossa!

A certeza jurídica constituiria o ganho (político) da adoção desta metodologia. No arco (ou modelo) das categorias pré-existentes são fixadas todas as novas previsões legais, que assim deixariam de ser “novidades”, pois encontrariam seu significado em antigos, conhecidos e pacificados “significantes”, como por exemplo, a ação penal, o direito subjetivo do acusado e o poder de decidir as causas, próprio e inafastável da atividade jurisdicional.

Esta é a razão pela qual há inúmeros manuais de processo penal que insistem em classificar a transação penal conforme as referidas categorias e operam do mesmo modo com qualquer nova previsão legal, estabelecendo interrogações cujas respostas dependem da relação, por exemplo, entre transação penal – ação penal, transação penal – direito público subjetivo do acusado e transação penal – e poder jurisdicional.

Também neste nível as questões são colocadas nos concursos públicos – afinal, é deste saber, supostamente, que o futuro juiz criminal auferirá os fundamentos de sua decisão – e, não raro, igualmente é nestes termos que o problema chega aos tribunais para exigir que se resolva sobre a inércia do Ministério Público, a coisa julgada na sentença homologatória e a possibilidade da transação penal em crimes de ação penal exclusivamente privada.

Parece um contrassenso pensar em tais bases hoje, competentemente.

A rigor, não há uma “natureza jurídica”. O mecanismo classificatório busca facilitar nosso entendimento da realidade e nos orientar, dirigir as nossas ações em um mundo da vida em que os consensos acerca dos significados são tão essenciais quanto as dissensões.

Pelo caminho tradicional, de conformar rigidamente o futuro de acordo com o passado, muitas vertentes disputam a primazia acerca do âmbito normativo da transação penal.

Há espaço para visões inquisitoriais, que dispensam a intervenção do Ministério Público para fazer a transação penal prevalecer por iniciativa judicial, distorcendo o ideal acusatório do processo como ato de três sujeitos: autor, réu e juiz.

Neste contexto e por força dos novos tempos, que não convivem bem com manifestações que se autodefinem como autoritárias, o discurso de legitimação da transação penal por iniciativa judicial, sem respaldo em pleito do Ministério Público, busca esconder sua face dirigente pelo emprego da retórica de que a transação penal consiste em direito subjetivo do autor do fato.

A insuficiência do argumento à luz do próprio conceito de “direito subjetivo”, que é uma “posição jurídica de vantagem”, não incomoda, pois o que importa é apoiar a decisão sobre o significado em uma categoria “séria” da ciência do direito.

O paradoxo de o sujeito em posição de vantagem perseguir… uma “desvantagem”, a pena criminal, reflete o uso e abuso mecânico das “naturezas jurídicas” no comércio dos significados jurídicos, em que o que importa é estabelecer claramente as fronteiras de exercício do poder, preferencialmente para manter intactas aquelas que erigiram o juiz criminal como o “dono do processo”, com tudo o que este tem dentro, inclusive “a ação penal”, malgrado a objeção acusatória que decorre do artigo 129, inciso I, da Constituição da República.

A própria noção de ação penal entre nós é também deficiente. E sua debilidade se deve ao fato de buscar seus fundamentos na ação civil, à qual pretende assemelhar-se de qualquer maneira, ainda que à força, integrando na concepção de facultas agendi o princípio da obrigatoriedade, em uma convivência impossível entre inimigos conceituais declarados!

Assim, compreende-se a resistência de parte da doutrina contra a aplicação do atual artigo 28 do Código de Processo Penal – e o controle pelo Procurador Geral sobre o não oferecimento da proposta de transação penal pelo Ministério Público em primeiro grau-, pois é difícil comparar situações díspares, em que o ponto de partida é justamente o oposto: tradicionalmente, provoca-se o Procurador Geral porque não há denúncia; no caso da transação penal, ele é provocado por que a denúncia foi oferecida!

Qualquer solução com base nas categorias tradicionais causa desconforto, uma vez que remete a um padrão idealizado para dar conta de outras práticas e que, mesmo para estas (processo comum, por iniciativa do Ministério Público), ainda assim deixa muito a desejar.

3. A transação penal e a pena negociada no “novo Código de Processo Penal”.

O que era uma dificuldade, ultrapassável pelo censurável recurso intelectual de não se pensar na incongruência das opções disponíveis no “mercado do saber processual penal consagrado”, provavelmente se transformará em um grave problema, a desafiar as mentes brilhantes que se atreverem a deduzir procedimentos classificatórios (ação penal, direito subjetivo do acusado, poder jurisdicional, o que fazer?) que hoje reinam nos cursinhos preparatórios para concursos públicos, mas estão em regra despidos da indispensável seriedade científica.

Assim é que os propostos artigos 278 e 279 do futuro Código de Processo Penal (PLS 156/09) possibilitarão que, por iniciativa do Ministério Público ou da Defesa, mas sempre, neste caso, mediante concordância da acusação, o juiz aplique, diretamente, penas em acusações da prática de crimes cujas penas máximas não ultrapassem oito anos.

Trata-se de condenação, reconhecida nestes termos no projeto, expressamente, pelo § 7º do projetado artigo 279.

Parece improvável que, a pretexto de imposição de pena mínima (inciso II do primeiro § 1º do artigo 279 – pois, por erro, mesmo na versão da Comissão de Constituição e Justiça há dois §§1º), alguém defenda a revogação pela lei do artigo 129, inciso I, da Constituição da República e sustente como válida a condenação direta sem a concordância do Ministério Público.

Tampouco é seguro supor que se pretenda distinguir a transação penal nas infrações de menor potencial ofensivo daquelas em crimes de médio potencial, postulando-se que num caso, diferentemente do outro, a “ação penal” terá sido proposta.

Nesta etapa da globalização, com ampla convivência e influência dos sistemas jurídicos, a ignorância do conceito de acusação e a crença de que processo civil e penal são métodos que comungam categorias, apesar das radicalmente diversas histórias e propósitos, traria graves consequências na prática, afetando a racionalidade do próprio sistema.

O processo penal consensual, por qualquer de suas modalidades, visa aplicar penas (de prisão ou outras) por meio de acordo entre as partes. A acusação, titular constitucional da ação penal e, portanto, detentora do poder de iniciar o processo, e a Defesa, com a escuta e concordância obrigatória do principal interessado, o acusado, são os sujeitos processuais que definem se haverá ou não dispensa de prova para a imposição de pena[1]. E este é o plano da negociação: acertar a responsabilidade penal do acusado dispensando-se a produção de provas.

A atuação judicial é fundamental para filtrar as acusações e impedir os abusos, tolhendo a iniciativa do Ministério Público naqueles casos em que não há justa causa para a ação penal.

Convém registrar que um fenômeno comum, notado na prática da negociação direta sobre penas, em outros ordenamentos, diz com a banalização dessa prática, por interesse de Promotores de Justiça e defensores em geral. A facilitação da justiça penal consensual, pela celeridade que inegavelmente empresta ao processo, configura mecanismo de “sedução” perigoso, a exigir de um juiz distante dos interesses de aceleração processual que intervenha examinando as premissas para o próprio exercício da acusação penal.

4. Considerações finais

A percepção deste quadro pelos tribunais, a partir da racionalidade que orienta o processo penal de partes, pode estar na base da consolidação da ideia, na atualidade, de que a proposta de transação penal depende da iniciativa do Ministério Público.

O horizonte proposto pelo PLS 156 neste ponto simplesmente projeta entre nós prática consolidada em outros ordenamentos, situando os sujeitos processuais em seu devido lugar e assegurando ao juiz o cumprimento de sua mais nobre função, na ordem constitucional democrática, na órbita penal, que consiste em zelar pelos direitos fundamentais do acusado.

Claro que há inúmeros perigos – para o Estado de Direito – que derivam da justiça penal consensual. A eles, todavia, não devemos acrescentar a indesejável perenidade das tradições inquisitoriais, que no passado fizeram do juiz criminal brasileiro o grande protagonista de um poderoso Sistema de imposição de dor e sofrimento.

E é pela defesa do Estado de Direito e da democracia que dedico o artigo ao e. Desembargador José Fernandes Filho.


PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 103-108

Notas

[1] Ressalto aqui minha posição pela inconstitucionalidade da transação penal em torno da prisão, conforme expus em Transação Penal, 2ª Ed, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006.

Geraldo Prado - A Transação Penal Quinze Anos Depois