A metáfora do trem e do trilho, de Barbosa Moreira, sobre a diferença entre processo e procedimento, bem ilustra o estado do devido processo legal no Brasil. Os diversos carros com sujeitos processuais com ambição de poder forçam a locomotiva a sair do trilho levando a que a própria locomotiva, em um determinado momento, e com os mesmos fundamentos, decida por correr livre à margem da ferrovia.

O resultado desastroso é previsível. As razões da Constituição para estabelecer as margens do devido processo se perdem na memória cada vez mais turvada pela premência da conjuntura – o “combate” à corrupção, quer a de empresas e agentes públicos, quer a de investigadores policiais e do MP – e ao final todos se julgam com bons motivos para agir fora da “lei”.

Não há lugar para estes “bons motivos”. A experiência histórica sobre o resultado político do abuso do poder – ou, como afirma Agostinho Ramalho, quem nos livrará da “bondade dos bons”? – é a instituição do estado de exceção que, como o buraco negro, devora toda institucionalidade.

Reclamar da violação alheia ao devido processo legal é correto, justo e chama atenção para os abusos, mas a legitimidade política deste ato de reivindicação requisita também afirmar a ilegalidade dos abusos internos e assumir a eliminação de suas práticas e de seus efeitos.

Um trem descarrilado não retorna sozinho aos trilhos. Tampouco volta sem danos, alguns carros se perdem, é o preço da desastrada decisão de agir “fora da lei”. Mas é fundamental para a democracia que recuperemos o devido processo legal.

Ao final da “corrida” à margem o que temos é a morte da democracia. Este “resultado” é inaceitável a priori. Podemos justificar racionalmente as condutas ilegais. O discurso com frequência acomoda os maiores absurdos.

Mas se, sinceramente, o que desejamos é a melhor sociedade possível, plural e respeitosa das diferenças, devemos denunciar e agir contra “todos” os abusos no sentido de não admitir sua reiteração. Não há espaço para a seletividade. Não se trata de “caça às bruxas”.

Cuida-se, isso sim, de reconhecer erros, reparar danos – materiais, morais e históricos – e com humildade compreender os fundamentos que levaram à repartição de poderes no pacto constituinte de 1987/88.

A humildade institucional é para os/as “grandes” e os(as) há em todas as instituições (Polícia, MP, Judiciário etc.). Quem pela vaidade e ambição se viu “reinventando a roda” e “atropelando” os direitos apenas deu testemunho pessoal da ignorância em muitos aspectos.

A estas pessoas, oportunistas, falta a virtude cívica que inspirou Ulysses Guimarães e demais no mais importante projeto político de nossa história. Não se pode contar com os oportunistas. Mas as instituições são maiores e melhores do que eles.

Ainda temos em ação vários que creem nas virtudes dos atalhos. Interditar-lhes os passos ilegais é premissa. Não aceitar, sob hipótese alguma, a responsabilização penal fora dos marcos do devido processo legal é imperativo categórico.

E fazer isso controlando o abuso dos extremistas, que estão no poder graças às distorções intencionais do devido processo, é o único caminho para retorno à normalidade. Claro: também cabe aprender em definitivo, esta geração, que não há espertezas e “saltos” que se justifiquem a si mesmos.

Geraldo Prado, 20 de fevereiro de 2021