I – Em 05 de outubro o STF concluiu o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 44 – DF e entendeu, por maioria, que a interpretação do artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) deve harmonizar-se com as que resultam dos artigos 637 do CPP e 1.029, §5º, Código de Processo Civil (CPC).

Ressalvo que assisti apenas aos votos dos ministros Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Portanto, seria incorreto e injusto concluir algo a respeito do que possa especular tão-somente em virtude do resultado do julgamento.

Mesmo estes votos, resumidos oralmente, foram densos e tocam em muitos pontos que justificam o empenho da academia em submeter a decisão à crítica com o cuidado que é cobrado de toda reflexão teórica.

Sublinharei somente alguns aspectos do julgamento que me chamaram atenção, não apenas pelo caráter controverso dos argumentos expostos, como pelo que me pareceu na prática a negação do que ambos afirmaram que estavam fazendo.

II – Antes, porém, destaco o que para mim é uma característica do direito processual penal: este campo do saber jurídico não é demarcado com exclusividade pelo direito.

Sem embargo das polêmicas conhecidas, a partir da observação das práticas em vigor no século passado, na Papua-Nova Guiné, as pesquisas de Jared-Diamond parecem confirmar as hipóteses de Bronislaw Malinowski sobre como as sociedades arcaicas, a tradição e os mitos têm peso significativo no arbitramento de castigos. Não há como descartar a contribuição dos elementos tradicionais e das crenças na organização de nossas “respostas penais”, encaradas como técnicas de responsabilização.

E a verdade é que mesmo sociedades tidas como avançadas e com longa experiência em estudos acerca da punição à luz de regras estritamente jurídicas, como foi o caso da Alemanha, entre 1933 e 1945, cederam ao impulso de retorno ao arcaísmo como forma de punir comportamentos indesejáveis.

Neste sentido defendo a tese de que o direito processual penal se constitui, principalmente, após o final da Segunda Guerra Mundial, como resultado da compreensão de que se não é possível abandonar por completo determinadas práticas sociais, estas hão de se acomodar ao conjunto de princípios formadores do direito internacional dos direitos humanos, que funcionam como condição de validade jurídica dos atos de arbitramento da responsabilidade penal.

O direito processual penal tem, pois, uma faceta prescritiva e não somente descritiva da realidade dos sistemas penais, porque busca expressar o resultado da transição das simples práticas de responsabilização para um modelo em que tais práticas são racionalizadas conforme a orientação de contenção e legitimação do poder punitivo.

O viés epistemológico do direito processual penal, que é defendido no plano das teses tanto por teóricos críticos de variadas correntes como por defensores da teoria do garantismo, é de natureza engajada: com ênfase, este viés repele o apelo a crenças no lugar da demonstração quer da responsabilidade individual, quer da capacidade do sistema penal de cumprir missões para as quais não é sequer o instrumento adequado.

Assim, o saber do processo penal estabelece uma linha divisória entre o direito e o não-direito processual penal: esta demarcação permite, por exemplo, para valer-me da situação extrema, classificar as práticas penais nazistas, ainda que formalizadas por processos e decisões de tribunais, como um não-direito processual penal.

Os enunciados das leis e das decisões são para o direito processual penal objeto de uma hermenêutica que muito claramente separa e classifica as coisas, com independência da autoridade que a ordem jurídica confere a enunciados normativos e às decisões: sentenças formalmente válidas podem ser consideradas, sob o prisma do saber processual penal, um não-direito processual penal. Em outras palavras, podem ser classificadas como atos de poder – na linguagem do fim do medievo, auctoritas facit legem por meio da decisão do caso concreto.

A sua condição de expressão do direito processual penal requisita correspondência com o sistema do processo penal, configurado por um conjunto de conceitos próprios, descritivos e operativos, que se alinham ao propósito de conter os abusos do poder punitivo no inevitável processo social de determinação de responsabilidades.

III – A Alemanha segue como exemplo. O direito processual penal sucedeu o não-direito do nazismo.

É inequívoco que as novas formas de criminalidade ganharam em engenho e potencial de causar danos. As tecnologias de comunicação e informação, as redes e a circulação mundial de pessoas e bens, incrementam as condutas delituosas, dificultando sua prevenção, detecção e punição.

Ainda assim, a Alemanha, por sua Corte Constitucional Federal, busca enfrentar a situação com o olhar voltado ao passado para dele extrair uma lição: a ampliação do âmbito de punição não se justifica ao preço da violação da legalidade processual penal. Esta, ao contrário do que supõe o Ministro Fachin, tem no ponto status equivalente à legalidade penal porque ambas gozam da ancestralidade comum inerente à tutela da dignidade da pessoa.

A Lei Fundamental é alterada sempre que novas tecnologias são aplicadas às comunicações de sorte a estabelecer desde parâmetros para a intervenção excepcional nesse setor (prognóstico negativo do âmbito essencial da vida privada) até a previsão das novas modalidades de comunicação a serem objeto de controlada interferência estatal.

Não há espaço para analogias de signo restritivo na seara dos direitos fundamentais, ainda que se trate de processo penal, porque não se consente com o discurso de pânico da “impunidade” e do medo e eles não funcionam como cláusulas de exclusão/suspensão/exceção da normatividade constitucional.

O “permanente estado de exceção” não é próprio das democracias, tampouco o Judiciário está autorizado a impor na prática esse estado de suspensão de direitos e garantias.

A força do princípio da legalidade vem do convencimento gerado pela situação extrema, de que muito pouco diferenciou o judiciário alemão durante o nazismo das práticas sociais punitivistas das sociedades arcaicas.

A preocupação dos juízes com disfunções na aplicação das regras do processo penal é legítima. Ilegítimo é assumir o papel do legislador e, especialmente, de legislador constitucional, e regrar o processo penal conforme supõe seja o melhor para transformar os processos judiciais em instrumentos mais eficientes.

Como afirmei, outros poderes judiciários optam prudentemente por deixar ao legislativo a tarefa de legislar.

IV – De toda maneira, os juízes são – e as cortes constitucionais com maior razão o são – os tutores jurídico-constitucionais da presunção de inocência (Claus Roxin).

O significado dessa afirmação diferencia direito e barbárie. O direito processual penal está estruturado com base na presunção de inocência.

O devido processo legal é fórmula vazia se a lei resultar em uma liberdade do poder de punir que o torne incontrolável. Todas as sociedades, de uma forma ou de outra, “justificam” o exercício do poder de punir. Não se tem aí apenas uma “questão de força”. Há um discurso racional por trás de decisões que contrariam a Constituição e as leis.

O problema reside nisso. As várias experiências autoritárias neste campo fundaram-se em “uma boa razão”, à luz da opinião da maioria, para descolarem-se da legalidade, esvaziarem a legalidade de qualquer conteúdo de garantia. O discurso sempre é de “garantia da sociedade” contra as ações identificadas como perniciosas.

Saliento que não há termo de comparação entre as atrocidades de regimes extremos de exceção e decisões de interpretação/aplicação da presunção de inocência no direito brasileiro contemporâneo.

O que se afirma com todas as letras é que a prevalência do devido processo legal sobre a presunção de inocência abre as portas ao arbítrio, que em maior ou menor medida estará sempre nas mãos dos agentes públicos encarregados da repressão penal.

Por isso o direito processual penal funda-se na prevalência da presunção de inocência sobre o devido processo legal. O processo observará a “forma devida” quando e somente quando guardar fidelidade com a presunção de inocência.

V – A presunção de inocência é um princípio estruturante do processo penal e as consequências disso são diametralmente opostas àquelas reconhecidas nos dois votos orais mencionados.

Releva notar que o desacordo sobre o conceito de “princípio constitucional” é irrelevante. Quer o princípio seja considerado um modelo hermenêutico (Álvaro Ricardo Souza Cruz – Hermenêutica Jurídica e(m) debate), quer se trate de espécie normativa, de fato em nosso atual estágio não pode haver dúvida de que há uma regra encarnada no preceito dispositivo do inciso LVII do artigo 5º da Constituição que apenas comporta interpretação que seja compatível com a rede conceitual própria do direito constitucional e do direito processual penal.

Assim, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” e “o pedido de concessão de efeito suspensivo a recurso extraordinário ou a recurso especial poderá ser formulado por requerimento dirigido…” (art. 1.029, §5º, CPC) não deixam ao intérprete margem de interpretação/criação salvo considerar que um recurso, seja ele extraordinário ou especial, é sempre um recurso e, portanto, sua interposição caracteriza-se por obstar o trânsito em julgado (José Carlos Barbosa Moreira – Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 257) e o trânsito em julgado, por sua vez, se caracteriza pela preclusão das vias de impugnação ordinária, restando ao eventual reclamante lançar mão com exclusividade das ações autônomas de impugnação (habeas corpus e revisão criminal).

Caso a rede conceitual compartilhada pelo direito processual penal considerasse os recursos especial e extraordinário como meios de impugnação especiais, orientados a desfazer a coisa julgada, o impedimento de eventual execução penal em hipótese alguma seria a concessão de efeito suspensivo, mas o deferimento de medida liminar em âmbito cautelar, para evitar dano (processual, mas não apenas) irreparável.

Os argumentos dos cultos ministros do STF, respeitosamente, esbarraram na rede conceitual existente. Em realidade, e diferentemente da decisão criticada por ambos, da relatoria do ministro Eros Grau (HC nº 84.078- MG), a solução “original” ou “criativa” é a que prevaleceu no julgamento do dia 05 de outubro de 2016.

E isso se percebe com relativa facilidade quando o julgamento de 2009 é contextualizado. A tradição das práticas processuais brasileiras, repristinada no julgamento recente, sempre foi a da execução provisória da pena, a ponto de o revogado art. 393 do CPP estabelecer que “são efeitos da sentença condenatória recorrível”: I – ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações penais inafiançáveis, como nas afiançáveis, enquanto não prestar fiança”, algo similar ao desejo manifestado durante o julgamento pelo ministro Barroso, para as decisões não fundamentadas do Júri.

O citado artigo do CPP foi revogado pela Lei nº 12.403/2011 justamente porque em contradição com a presunção de inocência. A decisão de 2009 havia interpretado no sentido da Constituição que o trânsito em julgado como condição para a consideração de culpado é imprescindível e, portanto, incompatível com a regra do art. 637 do CPP, declarada na ocasião inconstitucional (ver infra).

VI – O processo de interpretação e aplicação do princípio e da regra encarnados no preceito do art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República, não se faz desvinculado dessa rede conceitual.

Como leciona Daniel González Lagier, os esquemas conceituais cumprem o papel de classificar as ações e proporcionar condições para compreendê-las, funcionando como ferramentas teóricas aptas a ordenar o mundo (Hechos y conceptos).

Este mesmo autor nos ajuda a compreender “como” funciona a rede conceitual: os conceitos operam em um esquema que considera sua fundamentação, finalidade e adequação.

Significa dizer que a simples redação constitucional “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, é mero texto, exceto quando submetida ao processo de redução de complexidade, via interpretação, que irá demarcar os inúmeros campos de sua incidência conforme a “finalidade” e a “adequação” da presunção de inocência.

Antes de qualquer tentativa de “ponderação”, caberia, pois, nos votos, delimitar o âmbito normativo da presunção de inocência relativamente à prisão das pessoas, considerando a fundamentação, finalidade e adequação da referida categoria.

A operação de delimitação desse campo estava facilitada pelas razões da Lei nº 12.403/2011 para revogar o art. 393 do CPP, isso caso se optasse por desconsiderar as decisões da Corte Interamericana sobre que bens da vida são tutelados pela presunção de inocência.

O discurso dominante em ambos os votos, embora mais marcante no voto oral do ministro Fachin, desalojou a liberdade de ir e vir do campo normativo da presunção de inocência. Em síntese, o culto magistrado manteve a presunção de inocência em relação, quase exclusivamente, com a prisão definitiva, mas apenas naquilo que resulta do “afastamento” da presunção de inocência por meio da sentença transitada em julgado.

A prisão processual deixou de ser uma questão disciplinada pela presunção de inocência, ao menos quando julgada a apelação, embora carente de trânsito em julgado.

Para a prisão provisória os dois votos orais convencionaram uma nova rede conceitual que, apelando à analogia in malam partem, foi buscar no novo CPC e em seu regramento dos recursos especial e extraordinário, o que havia sido expurgado, relativamente a eles no CPP (art. 637), pelo julgamento de 2009: uma nova espécie de prisão processual, distinta da preventiva e da temporária, cujo título repousa no julgamento da apelação, uma maneira de transportar a regra do revogado art. 393, I, do CPP para a esfera dos efeitos do acórdão condenatório.

A prisão preventiva tem seu estatuto jurídico claramente definido entre os artigos 311 e 316/318 do CPP. Não há maneira de interpretar as hipóteses de periculum libertatis como uma situação geral e abstrata, que incide sempre que uma apelação for julgada. Como “parte” da estrutura das cautelares, o periculum libertatis somente pode ser divisado de modo individual, em cada caso. Do contrário, não é cautelar, mas castigo automaticamente imposto pela concretização do julgamento da apelação.

Sequer aqui insisto em um problema insolúvel criado pela decisão, em particular com a reiterada referência ao longo do julgamento ao art. 637 do CPP, banido da ordem jurídica pela decisão de 2009.

Os argumentos a respeito são bastante conhecidos (há artigo meu publicado no boletim do IBCCrim): como acentua Ana Paula Oliveira Ávila, “a declaração de inconstitucionalidade de uma norma importa a sua exclusão do ordenamento jurídico”. E acrescenta: “Não há mais norma válida ou vigente, a norma é tornada um ‘nada’ (vernichten) ou, como dizem alguns, é expulsa do ordenamento”.

Para que não haja dúvida, a ementa daquele julgamento contemplou o seguinte: “2. Daí que os preceitos vinculados pela Lei nº 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP.”

O fato é que a argumentação de defesa da antecipação da pena, ao menos no que concerne a estes dois votos orais, necessitou refugiar-se em uma cidadela conceitual que não é a do processo penal, tampouco a da Constituição, mas que se assemelha com a do processo civil.

VII – Interessante que estes dois votos, ao menos na exposição oral, iniciaram seguindo idêntico trajeto argumentativo: o pragmático.

O ministro Fachin lembrou que o autoritarismo apela à punição como panaceia para os males sociais. Não há como acolher esse remédio amargo, disse. E acrescentou que o extremo oposto, o abolicionismo penal, igualmente carecia de legitimidade, porque a Constituição promete proteção a bens jurídicos que podem ser violados pela conduta criminosa. Há, portanto, que assegurar a eficiência do processo criminal.

O problema do argumento pragmático é que não raro toma a forma de instrumento da ação estratégica.

O agir estratégico opera no nível pragmático, que se caracteriza por converter “o conhecimento [em] instrumento a serviço da atividade” em que “o pensamento tem um caráter essencialmente teleológico. A verdade de uma proposição consiste, portanto, no fato de ‘ser útil’, de ‘ser bem sucedida’, de ‘dar satisfação’” (André Lalande. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia).

Ditas as coisas como foram compara-se o incomparável para se extrair uma conclusão que apoia a solução jurídica apresentada pelo culto ministro.

Não há dúvida de que no campo ideológico punitivista as forças políticas operam para abreviar ao máximo o processo e antecipar a punição. Aliás, contra isso o século XVIII viu nascer a presunção de inocência.

O problema do argumento está em supor que a presunção de inocência tem algum interesse para o abolicionismo penal.

Com efeito, não tem. Vale antes lembrar que não há “um” abolicionismo penal, mas várias correntes abolicionistas, como por exemplo as defendidas por Louk Hulsman e Thomas Mathiesen, bastante diferentes entre si.

Em comum pregam a prescindibilidade do Sistema Penal como administrador de conflitos. Não pretendem a punição e, por isso mesmo, não organizam suas propostas em torno de uma “sentença condenatória” que possa transitar em julgado.

Ora, a questão segue como no início, com a tensão estabelecida entre os que defendem, pragmaticamente, a antecipação da punição e os que são contrários a ela, pois sustentam que a regra constitucional deve ser observada: punir somente depois do trânsito em julgado.

Suprimindo-se os “abolicionistas” do extremo oposto do argumento, desaparece a posição de “meio” reivindicada pelo voto do ministro Fachin, que passa a ser expressão, mais moderada, porém inequívoca, da antecipação da punição contra mandamento constitucional.

O ministro Barroso começou sua exposição citando três casos que, segundo adverte, revelaram a ineficiência do atual sistema, fundado na interpretação apoiada na decisão de 2009.

Sem que isso possa minimamente ofuscar o brilho intelectual do querido professor e ministro, a realidade é que, do ponto de vista metodológico, a citação dos três casos não é válida como “fundamentação” do giro conceitual a que me referi.

Os três casos são exemplares? Por quê? De quê? Eles retratam o mau funcionamento do sistema? Seu bom funcionamento e, consequentemente, sua ineficácia? As duas coisas? E como explicar as centenas de milhares de condenados e as centenas de milhares de presos provisórios?

O ministro Fachin elegantemente criticou a opacidade metodológica das pesquisas realizadas pela Fundação Getúlio Vargas. A crítica se aplica aos três exemplos expostos pelo ministro Barroso.

No entanto, também neste ponto o julgamento deixa algumas lições.

O pragmatismo não se identifica unicamente com certo modo do pensar filosófico. Há compreensões acerca do fenômeno jurídico que encaram o Direito como experiência (conjunto de experiências) pragmática (s).

Com efeito, Leonel Severo Rocha chama atenção para o paradigma funcional estruturalista desenvolvido por Niklas Luhmann, que trabalha em perspectiva pragmático – sistêmica e pondera “as funções pragmáticas da linguagem nos processos de decisão jurídica”.

O pragmatismo não sustenta que a realidade possa ser simplificada. Ao contrário, se reconhece a complexidade do sistema social e se prescreve para o Direito alguma função de redução dessa complexidade, o que se faz colocando acento no processo comunicacional.

A teoria da sociedade trabalha com as noções de “risco” e de “paradoxo”, que são decisivas quando se pretende apresentar solução para as complexas questões derivadas da tensão dialética entre direitos fundamentais e segurança, ou da tensão entre liberdade e segurança.

Não se trata de dissolver a complexidade, de o Direito fazê-la desaparecer como se o dissídio entre liberdade e segurança, por exemplo, não existisse em determinadas situações.

Paradoxalmente, segundo este ângulo é pelo reconhecimento do caráter complexo da vida social contemporânea que podem ser avaliadas, política e juridicamente, as opções válidas para a solução das controvérsias.

O pensamento pragmático de ambos os ministros apontou na direção de uma solução: deslocar os recursos especial e extraordinário de seu território constitucional atual, de meio de impugnação ordinário orientado a fazer prevalecer o direito objetivo, para o de meio extraordinário, equivalente à reclamação constitucional.

Talvez seja uma solução. Talvez seja uma boa solução. Todavia, somente pode ser uma solução válida via emenda à Constituição, tarefa que à toda evidência não lhes cabe.

Quando, ao revés, o STF incorpora poderes de legislador constituinte termina por violar o princípio republicano que pretende poderes equilibrados, ponderados e harmônicos.

Ao escolher este caminho, sacrificando o conjunto de conceitos característicos do processo penal, o STF deu um enorme passo atrás: submeteu a presunção de inocência ao devido processo legal, com toda a abertura hermenêutica que esse devido processo proporciona, até mesmo pelo encurtamento na prática do direito de defesa que a Constituição preceitua que seja amplo.

À diferença de outros Estados – e os ministro Celso de Mello e Marco Aurélio constantemente advertem acerca deste aspecto – o Brasil optou por delimitar o “ponto” de afastamento da presunção de inocência: o trânsito em julgado da condenação.

Pode-se mesmo afirmar que essa inversão, que retira da presunção de inocência a condição de princípio estruturante do processo penal, para entregá-la ao STF, permanentemente, em sua tarefa de dizer “o que é o devido processo” encurralou a presunção de inocência.

Se ela já perde em sua dimensão probatória para presunções e crenças, em virtude do que até aqui tem prevalecido na Operação Lava Jato, agora a “ampla defesa” encontra-se totalmente desarmada.

Quando o mais importante princípio constitucional é atingido, que garantias tem a sociedade brasileira que qualquer outro não estará sujeito às mesmas ou mais intensas limitações?

Em 22 de novembro de 1973 foi promulgada a Lei nº 5.941, que alterou o CPP A partir daquele dia o acusado primário e de bons antecedentes, condenado, poderia apelar em liberdade (art. 594).

Esta lei, seminal para a defesa da liberdade, levou o nome de Lei Fleury, em homenagem ao delegado Sergio Paranhos Fleury, que prestou relevantes serviços à ditadura civil-militar e inscreveu seu nome na história definitivamente.

Às vezes me pego pensando se no Brasil realmente as boas coisas sempre têm que ser assim… derivar das tragédias e dramas, se não é possível defender a liberdade por ela, mas sempre para proteger justamente aqueles que menos a merecem.

Este tem sido um ano inglório para a Constituição. Mas não há um “fim da história”. Não temos mais Ulysses Guimarães, mas certamente podemos nos inspirar nele.

Publicado no Justificando.