O estatuto jurídico da acusação e o Projeto de Lei Anastasia-Streck – parte II
Para ler a primeira parte deste artigo, clique aqui.
Talvez o melhor exemplo de análise da fiabilidade probatória para o fim de autorizar uma acusação possa ser encontrado nas mencionadas orientações ao Ministério Público Inglês – The Code for Crown Prosecutors:
A Etapa Probatória
4.6 Promotores devem estar convencidos de que existem provas suficientes para fornecer uma perspectiva realista de condenação contra cada suspeito em cada acusação [*Para os propósitos do Code for Crown Prosecutors, “condenação” inclui uma conclusão de que “a pessoa cometeu o ato ou se omitiu” em circunstâncias em que a pessoa é susceptível de ser considerado inocente por motivos de insanidade]. Eles devem considerar o que pode ser a defesa e como é provável que ela afete as perspectivas de condenação. Um caso que não passa do estágio probatório não deve prosseguir, não importa quão sério ou sensível possa ser.
4.7 A conclusão de que existe uma perspectiva realista de condenação baseia-se na avaliação objetiva das provas pelo promotor, incluindo o impacto de qualquer defesa e qualquer outra informação que o suspeito tenha apresentado ou em que possa confiar. Significa que um júri, colegiado de magistrados ou juiz que julgue um caso sozinho, objetivo, imparcial e razoável, devidamente orientado e agindo de acordo com a lei, tem maior probabilidade de condenar o acusado pela acusação alegada. Este é um teste diferente daquele que os próprios tribunais penais devem aplicar. Um tribunal só pode condenar se tiver a certeza de que o arguido é culpado.
4.8 Ao decidir se há provas suficientes para processar, os promotores devem se perguntar o seguinte:
Pode a prova ser utilizada no tribunal?
Os promotores devem considerar se há alguma dúvida sobre a admissibilidade de determinadas provas. Ao fazê-lo, os procuradores devem avaliar:
- a probabilidade desta prova ser considerada como inadmissível pelo tribunal; e
- a importância da prova em relação ao conjunto probatório como um todo.
A prova é confiável?
Os promotores devem considerar se há razões para questionar a confiabilidade da prova, incluindo sua precisão ou integralidade.
A prova é crível?
Os promotores devem considerar se há alguma razão para duvidar da credibilidade da prova.
Existe algum outro material que possa afetar a suficiência de prova?
Os promotores devem considerar nesta etapa e ao longo do caso se há algum material que possa afetar a avaliação da suficiência de prova, incluindo material examinado e não examinado na posse da polícia, e material que pode ser obtido através de outras linhas razoáveis de investigação.[1]
A tarefa de acusar implica, primordialmente, definir o contexto da realização em tese da conduta de tal maneira que se exclua hipótese em sentido oposto que decorra do mesmo conjunto probatório oriundo da investigação criminal. Em outras palavras: o fato definido como crime e imputado ao acusado com fundamento em elementos probatórios obtidos na investigação criminal não pode ser equívoco, ambíguo ou dúbio em seu sentido delituoso. Os elementos informativos não podem ensejar outra interpretação que não seja do caráter criminoso da conduta imputada ao acusado. As pessoas não podem ser acusadas da prática de comportamentos que podem não ser delituosos. Elas somente devem ser acusadas da prática de infrações penais.
Estabelecer a existência de um “fato” que realmente caracterize justa causa para a ação penal não é uma preocupação que diz respeito exclusivamente ao direito brasileiro. Em obra clássica de filosofia do Direito Penal norte-americano, Douglas Husak acentua os riscos da denominada “sobrecriminalização” que, entre vários modos como pode se apresentar, não raramente toma a forma de “sobrecarga da acusação”, que o Direito anglo-americano define como overcharging. [2]
É compreensível que a preocupação com o overcharging tenha surgido antes, entre os norte-americanos, do que no Brasil. Assim é que as regras processuais penais vigentes nos Estados Unidos da América sempre deram precedência à liberdade durante o processo,[3] por via direta ou mediante garantia do juízo (fiança).[4]
As limitações à liberdade, aparecidas na sequência à entrada em vigor do Bail Reform Act, em 1984,[5] e os riscos derivados das acusações por vingança, no entanto, foram responsáveis pelo incremento dos dispositivos de controle da acusação. O excesso de acusação é empregado pelo acusador como facilitador da prisão durante e depois do processo de conhecimento, e os referidos dispositivos de controle do excesso de acusação foram criados inspirados em precedentes que surgiram na jurisprudência norte-americana para proscrever o uso abusivo das práticas negociais em âmbito penal (plea bargaining). [6]
Assim, por exemplo, o preceito 3-3.9, das Normas para a Justiça Criminal da American Bar Association,[7] estipula:
Prosecution Function
Standard 3-3.9 Discretion in the Charging Decision
A prosecutor should not institute, or cause to be instituted, or permit the continued pendency of criminal charges when the prosecutor knows that the charges are not supported by probable cause. A prosecutor should not institute, cause to be instituted, or permit the continued pendency of criminal charges in the absence of sufficient admissible evidence to support a conviction.
[…]
(d) In making the decision to prosecute, the prosecutor should give no weight to the personal or political advantages or disadvantages which might be involved or to a desire to enhance his or her record of convictions.
(f) The prosecutor should not bring or seek charges greater in number of degree than can reasonably be supported with evidence at trial or than are necessary to fairly reflect the gravity of the offense.
(tradução livre)
Normas para Justiça Criminal da Associação Americana de Advogados: a Função do Promotor
Norma 3-3,9 Discricionariedade na decisão de denúncia
Um promotor não deve instituir, ou fazer com que sejam instituídas, ou permitir a pendência contínua de acusações criminais quando souber que as acusações não são suportadas por justa causa. Um promotor não deve instituir, causar a instituição, ou permitir a pendência contínua de acusações criminais, na ausência de provas admissíveis suficientes para sustentar uma condenação.
[…]
(d) Ao tomar a decisão de acusar, o promotor não deve dar peso para as vantagens ou desvantagens pessoais ou políticas que possam estar envolvidas ou a um desejo de melhorar a sua estatística de condenações.[…]
(f) O promotor não deve trazer ou buscar acusações mais graves das que razoavelmente podem ser comprovadas pelas provas no julgamento ou que são necessárias para refletirem adequadamente a gravidade da ofensa.
O aperfeiçoamento de um processo penal, com a admissão de uma acusação, impacta sobremodo a dignidade da pessoa acusada sendo este o motivo pelo qual não são juridicamente válidos os processos criminais sem justa causa.
Toda cautela para evitar acusações injustas é bem-vinda.
[1] INGLATERRA. Code for Crown Prosecutors. Disponível em: https://www.cps.gov.uk/publication/code-crown-prosecutors. Consultado em 12 de novembro de 2018.
The Evidential Stage
4.6 Prosecutors must be satisfied that there is sufficient evidence to provide a realistic prospect of conviction against each suspect on each charge [*For the purposes of the Code for Crown Prosecutors, “conviction” includes a finding that “the person did the act or made the omission” in circumstances where the person is likely to be found not guilty on the grounds of insanity]. They must consider what the defence case may be, and how it is likely to affect the prospects of conviction. A case which does not pass the evidential stage must not proceed, no matter how serious or sensitive it may be.
4.7 The finding that there is a realistic prospect of conviction is based on the prosecutor’s objective assessment of the evidence, including the impact of any defence and any other information that the suspect has put forward or on which they might rely. It means that an objective, impartial and reasonable jury or bench of magistrates or judge hearing a case alone, properly directed and acting in accordance with the law, is more likely than not to convict the defendant of the charge alleged. This is a different test from the one that the criminal courts themselves must apply. A court may only convict if it is sure that the defendant is guilty.
4.8 When deciding whether there is sufficient evidence to prosecute, prosecutors should ask themselves the following:
Can the evidence be used in court?
Prosecutors should consider whether there is any question over the admissibility of certain evidence. In doing so, prosecutors should assess:
- the likelihood of that evidence being held as inadmissible by the court; and
- the importance of that evidence in relation to the evidence as a whole.
Is the evidence reliable?
Prosecutors should consider whether there are any reasons to question the reliability of the evidence, including its accuracy or integrity.
Is the evidence credible?
Prosecutors should consider whether there are any reasons to doubt the credibility of the evidence.
Is there any other material that might affect the sufficiency of evidence?
Prosecutors must consider at this stage and throughout the case whether there is any material that may affect the assessment of the sufficiency of evidence, including examined and unexamined material in the possession of the police, and material that may be obtained through further reasonable lines of inquiry.
[2] HUSAK, Douglas. Sobrecriminalización: los límites del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 41-51.
[3] GÓMEZ COLOMER, Juan-Luis (coord.). Introducción al Proceso Penal Federal de los Estados Unidos de Norteamérica. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 243.
[4] A liberdade processual está regulada no Título 18 USCA, Parte II, Capítulo 207, nos §§ 3141 a 3156 e na Regra 46 Fed. R. Crim. P. Conforme GÓMEZ COLOMER: “La VIII Enmienda prevé que ‘no se exigirán fianzas excesivas, ni se impondrán multas excesivas, ni se infligirán penas crueles y desusadas.’” (GÓMEZ COLOMER, Juan-Luis (coord.). Introducción al Proceso Penal Federal de los Estados Unidos de Norteamérica. Valencia: Tirant lo blanch, 2013. p. 243).
[5] Idem, p. 238.
[6] People v. White, 390 Mich 245, 258-259 (1973). “[T]he prosecutor clearly cannot have carte blanche to apply whatever tactics he wishes to induce a guilty plea. A policy of deliberately overcharging defendants with no intention of prosecuting on all counts simply in order to have chips at the bargaining table would, for example, constitute improper harassment of the defendant.” Tradução livre: “O promotor claramente não pode ter carta branca para aplicar quaisquer táticas que ele deseje para induzir uma confissão de culpa. Por exemplo, uma política deliberada de sobrecarga de acusação do réu (overcharging), sem intenção de processá-lo por todos os crimes, simplesmente, a fim de ter fichas na mesa de negociação, constituem assédio indevido ao réu.”
[7] Normas para Justiça Criminal da Associação Americana de Advogados: a Função do Promotor. Consultado em na data de 10/06/2014: < http://www.americanbar.org/publications/criminal_justice_section_archive/crimjust_standards_pfunc_blk.html#3.9>
Publicado originalmente no ConJur.