Em outubro de 2015, o Professor Juarez Tavares e eu apresentamos parecer sobre o processo de impeachment da Presidente da República e afirmamos que alguns dos processos de impeachment de presidentes, na América Latina, nas duas últimas décadas, foram empregados como substitutos dos golpes de estado aplicados no Continente pelas Forças Armadas ao longo do século XX.

Sustentamos na ocasião – e segue sendo nossa opinião – que verificadas determinadas variáveis, contata-se que o processo de impeachment é desvirtuado e se converte em golpe legislativo, algo que é possível acontecer, por exemplo, no contexto do atual processo de impeachment a que está submetida a Presidente da República, porque não há justa causa na acusação a ela da prática de crime de responsabilidade.

Muitas das críticas endereçadas ao “não vai haver golpe!” passaram longe da análise proposta no parecer.

É compreensível. Por um lado, com independência do julgamento que cada pessoa faz do governo (bom, regular, sofrível, péssimo), sempre há “vestígios traumáticos” que incorporamos por causa das experiências vividas ou simplesmente contadas acerca das nossas ditaduras (1937-45 e 1964-85). Mexer no campo das emoções é tocar em área sensível, algo que termina por remeter à atitude de negação. “Nego a possibilidade de que impeachment seja golpe” porque quero negar a possibilidade de voltar a viver em um regime de exceção.

Mas há contestações que se fundamentam no argumento de que a “defesa” de que impeachment seja golpe descamba para uma redução simplista da realidade constitucional brasileira. Estas contestações estão baseadas na ideia de que o impedimento da Presidente da República tem previsão constitucional e, portanto, é inconfundível com manobras dirigidas à quebra da normalidade institucional.

O texto contesta este argumento.

Em primeiro lugar, a afirmação de que processos de impeachment podem ensejar golpes legislativos não foi gratuita, tampouco irresponsável.

A análise do caso, no parecer, obedeceu aos rigores dos métodos comparativos em ciência política, na linha proposta por alguns teóricos absolutamente distanciados da vida brasileira, como o Professor Anibal Pérez Liñan, da Universidade de Pittsburgh.

Segundo Pérez Liñan, a comparação é uma estratégia analítica válida e necessária não apenas para fins descritivos, mas também explicativos de determinados fenômenos (grupos de casos), enquadrados em conjuntos específicos (tipologias).

A seleção destes casos considera:

a) um fenômeno empírico – a recorrência de processos de impeachment de Presidentes da República na América Latina (13), durante duas décadas (1985-2005), após a conclusão de processos de transição de ditaduras militares para democracias;

b) a significativa ausência de processos de impeachment no período de quase um século, antes do marco fixado (1985);

c) a estabilidade constitucional das Forças Armadas pós transição;

d) uma precisa definição operacional e as variantes.  Para efeito de definição operacional, ao contrário do que se tem sustentado, a previsão constitucional de processos de impeachment foi considerada no parecer.
Afinal, o impeachment torna-se uma “questão” do ponto de vista teórico porque está previsto na Constituição! O fato de estar previsto na Constituição é interpretado como “variável dependente”, isto é, a previsão constitucional do impeachment é um fator necessário quer para o emprego correto do instituto, quer para o incorreto.

e) o que efetivamente define se há/houve emprego correto ou incorreto do impeachment são as variáveis independentes, isto é aquilo que, além de ser necessário para o impeachment, em se verificando também é suficiente para caracterizar o seu uso incorreto (indevido, inconstitucional, enfim, golpe).

Por certo, a maior dificuldade para todos está em ter suficiente tranquilidade, no turbilhão da crise política, para identificar e avaliar os elementos que estão dados e que apoiam ou não a conclusão de que, no caso, impeachment é golpe. É a atitude de tentar controlar a emoção e examinar os fatos com critérios que não são simples e, eles próprios, os critérios, estão sob ataque dos interessados no golpe, em especial as corporações midiáticas, Globo à frente, dedicadas a desqualificar toda narrativa que invalide a tese da normalidade do impeachment.

As variáveis independentes identificadas na pesquisa que resultou no parecer foram:

a) a alegação de uma má gestão a cargo do(a) Presidente;

b) a ausência de previsão constitucional de moção de censura/voto de confiança (típicos do parlamentarismo);

c) a manipulação de exemplos de má gestão como “crimes de responsabilidade” para formalizar a acusação no processo de impeachment. Justo porque o presidencialismo sujeita o controle da má gestão ao “custo eleitoral” e não à “moção de censura” da Câmara ou do Congresso, “má gestão”, isoladamente, não pode ser definida nem mesmo pela Constituição como crime de responsabilidade, sob pena de violar regras-princípios constitucionais fundamentais.

d) a atuação de “terceiras partes” interessadas em antecipar o fim do mandato presidencial, como, a título de exemplo, Cintia Rodrigo e Dayse Mayer, em distintas obras e sob diferentes enfoques, destacaram ser uma constante no exercício do poder pelos meios de comunicação de massas.

Este é o resumo dos instrumentos de análise desenvolvidos por cientistas sociais brasileiros e sobretudo estrangeiros, que ao serem aplicados ao atual cenário inevitavelmente conduzem à conclusão de que o processo de impeachment em curso é uma tentativa de “golpe encoberto”.

O pedido de impeachment recentemente formulado pela OAB – de forma vergonhosa – escancara a pretensão de flexibilizar o mandato presidencial de Dilma Rousseff. Ao alegar que quer o impeachment pelo “conjunto da obra”, a OAB desvincula-se por completo dos critérios jurídicos de definição de crime de responsabilidade e parte para a analogia com a moção de censura, que não está prevista na Constituição.

As “pedaladas fiscais”, como reconhecem os especialistas em Finanças Públicas e Direito Tributário – dos liberais aos conservadores – não configuram crime de responsabilidade. Inadimplemento contratual não se confunde com operação de crédito. A absoluta ausência de tipicidade político-jurídica implica em falta de justa causa para o processo.

Insisto, porém, no que me parece fundamental e decisivo para a formação do contexto: a atuação das “terceiras partes”, em particular dos meios de comunicação de massas que no Brasil são verdadeiro monopólio.

Um processo de impeachment tão improvável juridicamente apenas se torna possível pela manipulação intencional de empresas de comunicação social que, desinteressadas de informar, atuam firmemente no sentido de construir uma opinião pública que pressione as instâncias jurídicas a tomarem como “crime de responsabilidade” o que não é.

Os “noticiários” da Globonews (canal fechado) e do Jornal Nacional (canal aberto), não têm o menor compromisso com o contraditório. Aliás, não surpreende porque o contraditório não faz parte da tradição de favorecimento ao autoritarismo, confessada recentemente pela própria Rede Globo de Televisão.

Relativamente aos temas candentes da vida social brasileira – vide a questão da reforma agrária, a proteção dos direitos sociais dos trabalhadores e as condições de vida digna, incluindo-se a preocupação ecológica que controverte com a exploração empresarial destrutiva de nosso meio ambiente – não há qualquer programa da emissora que viabilize um debate sério entre ideias opostas, sem intervenção opinativa de jornalistas da emissora, programa realizado, por exemplo, com sindicalistas, membros do MST, ou quaisquer pessoas que contrariem os valores do capital, e pessoas com ideias antagônicas. Os simulacros de debate não arranham as questões mais sensíveis aos brasileiros.

O post não pretende tocar na questão vital deste monopólio, que no lugar de assegurar a liberdade de expressão, em uma sociedade plural, elimina as condições para isso, padronizando pensamentos e formas de agir e instituindo uma atitude de não-reflexão propícia ao estímulo à violência como resposta aos conflitos.

A questão aqui, para finalizar, reduz-se ao reconhecimento de que os meios de comunicação de massas monopolizados “capturam a verdade” e buscam dominar a narrativa política, a ponto de convenceram muita gente de que as tais “pedaladas fiscais” são crimes de responsabilidade e “mesmo que não sejam” a Presidente da República é indesejável e deve ser deposta.

Esta captura da capacidade crítica da população, por meio da repetição incessante de inverdades como verdades – no parecer mencionamos “‘critérios de verdade’ em relação aos quais a verdade se torna um problema” – encontra, todavia, resistência.

A primeira e mais impactante está na capacidade de articulação da resistência nas redes sociais. A manipulação dos critérios de verdade, com a rudimentar distinção entre “manifestantes” e “cidadãos”, simpatizantes de partidos e movimentos sociais versus “pessoas de bem”, a “incapacidade” matemática de calcular públicos em manifestações já se transformaram em motivo de descrédito e chacota, graças à capacidade de multiplicação da informação proporcionada pelas redes sociais.

As empresas de comunicação de massas tentam passar a ideia de que “impeachment não é golpe”, mas o que hoje mais se fala é que “a Globo apoiou a ditadura!”

No entanto, isso não é suficiente. Como sublinha um dos autores referidos no parecer, Juan J. Linz (Professor em Columbia e posteriormente Yale), em “um sistema político democrático a Constituição ocupa um lugar único e a lealdade a ela é um componente essencial na estabilidade das democracias”, em particular quando enfrentam “sérias crises”.

Neste contexto, Linz, nascido na Alemanha e obrigado ainda jovem ao exílio por causa do nazismo e do franquismo, menciona que “uma atitude manipuladora na formulação e interpretação das Constituições pode converter-se em uma debilidade das democracias”. Cita como exemplo, em 1996, alguns regimes presidenciais latino-americanos.

Salienta Linz que “na democracia, a população necessita da garantia que a mantém unida”. E esta garantia é proporcionada por determinados órgãos, como o Poder Judiciário, orientados pela imparcialidade e independência.

No caso da divulgação ilícita de conversa telefônica da Presidente da República, a Globo repetiu incessantemente as gravações, seus jornalistas buscaram dramatizá-las e o intento, evidente, era o de corroer ainda mais a base de apoio ao governo que se pretende derrubar.

As pessoas reagiram. Muitos deixaram-se capturar pelo drama encenado pelos comentaristas da emissora e sequer perceberam que naquela oportunidade, diferentemente do que costuma fazer, o canal não convidou algum especialista da área do direito. Não permitiriam manchar a narrativa com a indesejável alegação da ilicitude flagrante do ato.

Pois bem. Hoje, 31 de março (52 anos depois do último golpe), o STF decidiu categoricamente, por seus dez ministros, que a ação do juiz era ilegal, inconstitucional e injustificável.

A decisão do STF neste caso não é apenas mais uma decisão. A Globo, antes de cada repetição dramatizada das ligações, enfatizava que a interceptação era legal, porque autorizada por um juiz.

Não há aqui o benefício da dúvida. A ilegalidade era flagrante até para um iniciante no curso de direito. Quando o STF impõe o respeito à Constituição revela – mesmo sem dizer – que houve ação de violação das regras da democracia.

Neste contexto, a violação propagada pelos meios de comunicação enquadra-se na variável independente mencionada acima e reforça a convicção de que estes meios querem e fazem parte do golpe de estado encoberto.

Entendo que muitos não queiram e não aceitem falar de golpe. No entanto, a única forma de impedir a violação à democracia é estudar e entender o que está ocorrendo, por mais dolorosa que seja a conclusão e ainda que não se concorde com uma vírgula das opções políticas da Presidente da República e de seu governo.

Publicado no Justificando.